sexta-feira, 30 de abril de 2010

Novas mulheres - Contardo Calligaris


" SONHOS ROUBADOS" , de Sandra Werneck, entrou em cartaz na sexta-feira passada. Alguns críticos trataram do filme junto com o de Laís Bodanzky, "As Melhores Coisas do Mundo" (sobre o qual escrevi na minha última coluna). A razão desses comentários conjugados é que os protagonistas do filme de Bodanzky são adolescentes de classe média, enquanto o filme de Werneck conta a história de três meninas da periferia. Portanto, juntando as duas películas, teríamos um retrato da adolescência brasileira ou, no mínimo, de seus dois extremos. É nesse estado de espírito sociológico que fui assistir a "Sonhos Roubados" e que li o livro de Eliane Trindade, "As Meninas da Esquina" (de 2005, relançado agora pela Record), que reúne os diários de seis jovens mulheres, três das quais, com condensações e adaptações, são as protagonistas do filme de Werneck.
Mal precisei esperar até a metade do filme para que meu estado de espírito mudasse (e o mesmo aconteceu ao avançar na leitura do livro): rapidamente, eu me apaixonei pelas protagonistas e me esqueci da periferia, que é o pano de fundo da história. Por quê? Simples: é verdade que as três jovens são vítimas da desigualdade social brasileira, mas é também verdade que elas não têm vocação alguma para o papel de vítima. Ao contrário, elas são as admiráveis heroínas de suas histórias.
Jéssica, Daiane e Sabrina vivem de expedientes, entre fugas da escola, pequenos empregos, famílias patéticas e prostituição ocasional. Nessas condições francamente adversas, elas não deixam de inventar a vida.
Jéssica e Sabrina não desistem de ser mães. Daiane não desiste de encontrar uma profissão e uma família -se não um pai, pelo menos uma mãe. As três não desistem de sair à noite à procura de um amor que nunca dá certo, de um pouco de aventura e de umas risadas entre amigas.
De repente, o título do filme, "Sonhos Roubados", parece injusto para com as protagonistas, pois elas, justamente, lutam para que seus sonhos não sejam roubados.
Disse que Jéssica, Sabrina e Daiane enfrentam condições adversas. A condição mais adversa de todas são os homens, que são insignificantes ou funestos. A galeria é devastadora.
Há o pai de Daiane, que morre de medo de ser pai. Há o avô de Jéssica, simpático por ser beberrão e inepto.
Há o ex-marido de Jéssica, fantoche nas mãos de sua própria mãe. Há o tio de Daiane, que abusa da sobrinha-enteada. E há a fileira dos violentos e boçais, encabeçada pelo namorado de Sabrina.
Com esses homens, Jéssica, Sabrina e Daiane não podem contar. Eles são sombras, incapazes de assumir um amor (seja ele paterno ou conjugal), uma amizade e, na verdade, qualquer compromisso: são todos nanicos morais. A única exceção é o presidiário encarnado por MV Bill -o que me levou a pensar (seriamente) que talvez homem só melhore mesmo na cadeia. Nas periferias e nas favelas, os núcleos familiares estáveis se organizam, em geral, ao redor de mulheres.
A explicação recebida por esse fenômeno diz que um lugar social desfavorecido, subalterno ou marginal corrói a "virilidade" dos homens e, portanto, torna-os ou nulos ou violentos (como se eles precisassem compensar na marra a virilidade perdida).
Mas será que essa debandada masculina é apenas um fenômeno de nossas periferias? Ou será que, periferia ou não, os homens de hoje (para usar uma expressão da Carol do filme de Laís Bodanzky) são mesmo um pouco (ou muito) "cuzões"?
Não sei responder, mas o fato é que o filme de Sandra Werneck não me deixou nem um pouco aflito. Ao contrário, saí do cinema alegre, pensando: é bem possível que os homens estejam piorando, mas, por sorte, as mulheres estão cada vez melhor. Como assim?
Nas primeiras décadas depois dos anos 1960, parecia que as mulheres, para afirmar sua independência e conquistar sua cidadania, teriam que renunciar a ser "mulher", pois, por exemplo, a maternidade e o próprio desejo sexual eram considerados como caminhos de submissão ao homem e ao patriarcado.
Pois bem, as meninas de "Sonhos Roubados" não renunciam ao sexo nem à maternidade; elas podem até se servir de seus charmes para arredondar o fim de mês ou o fim de semana. Mas não por isso elas dependem dos homens. Talvez seja porque não há homens de quem depender. Talvez seja porque elas são as novas mulheres -mulheres sem a culpa de serem "mulher".

Folha de S. Paulo (29 de abril de 2010)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Caridades cristãs - João Pereira Coutinho


EXISTE NESTE mundo um tema que é polêmica garantida: o papa. Na semana passada, num jantar, descobri o fenômeno e testemunhei uma violência inesperada. Alguém falou da visita de Bento 16 a Portugal no próximo mês. Houve indignações e desmaios à mesa. Como explicar estas reações hormonais que me espantam e divertem?
Bento 16 não é um papa qualquer, admito. Se tivesse nascido num país do Terceiro Mundo; se viesse da ala esquerda da igreja; se promovesse os temas progressistas do momento (preservativo, ordenação de mulheres, fim do celibato), talvez as reações não fossem tão extremas.
Acontece que Joseph Ratzinger é alemão. É um respeitado intelectual europeu, mesmo por pensadores seculares (como Habermas). E, em matéria de ortodoxia, foi o presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão máximo do Vaticano que defende e promove a doutrina da igreja, antes de chegar à cadeira pontifical. Será preciso dizer mais?
Alguns críticos lembram ainda os "abusos sexuais" que assolaram a instituição. Lamento desapontá-los.
A hostilidade a este papa já existia antes dos abusos. Sobreviverá a eles. Até porque os abusos existem em todas as denominações religiosas e ninguém fala do assunto. A hostilidade só tem um sentido. Um curioso sentido.
Digo "curioso" pelo motivo mais prosaico: a Igreja Católica fala para o seu rebanho. E, ao contrário de outros movimentos religiosos extremistas, não está interessada em submeter os infiéis pela força da espada. Roma evangeliza quem se deseja evangelizar.
E mesmo a sua doutrina sexual, que tanto encarniça os espíritos sofisticados, é um exemplo de modernidade e até de tolerância quando a comparamos com preceitos de outros credos. Condenar a camisinha é uma coisa. Outra, bem pior, é condenar a camisinha, apedrejar mulheres adúlteras ou enforcar homossexuais ladinos. Como sucede noutras latitudes.
Mas o circo não para. No Reino Unido, o Ministério de Relações Exteriores viu-se obrigado a pedir desculpas ao Vaticano. Conta o "Sunday Telegraph" que funcionários da instituição, instados a sugerir ideias para a visita do papa ao país (em setembro), propuseram em memorando interno uma linha de camisinhas com a marca Ratzinger; a abertura de uma clínica antiaborto; e, fatal como o destino, uma bênção papal de um casamento gay. O Vaticano pondera agora cancelar a visita.
E se assim foi na Grã-Bretanha, assim será em Portugal: informa a imprensa lusa que o papa não terá descanso quando aterrar em Lisboa. Por onde passar, existirão manifestações contra Bento 16, e grupos de jovens a distribuir preservativos e folhetins científicos sobre o perigo da AIDS.
Que dizer destes atos? Descontando a natureza infantil dessa gente, que estranhamente ainda não abandonou a idiotia própria da adolescência, o que existe nesses atos é uma paradoxal e assaz bizarra submissão à autoridade da igreja. Explico. Para um não católico, a igreja será apenas uma instituição entre várias, que legitimamente fala para quem a quiser ouvir. Um não católico não lhe reconhece autoridade especial; e não perde um minuto do seu precioso e laico tempo a tentar corrigir uma instituição a que não pertence.
E, em matéria sexual, estamos conversados: o que a igreja diz sobre a conduta privada dos seres humanos terá para um não católico a mesma importância que as recomendações da religião islâmica, ou judaica, ou hindu. Importância nenhuma.
É por isso paradoxal e bizarro o comportamento das patrulhas anticatólicas, que revelam ser o contrário daquilo que professam. Elas dizem-se "libertas" da influência apostólica romana. Mas, por palavras ou atos, limitam-se a manifestar uma obsessão com o papa que nem o mais católico dos católicos consegue exibir. Elas querem "resgatar" a sociedade da influência nociva da igreja. Mas são elas próprias que ainda se sentem "sequestradas" por uma instituição à qual reconhecem total ascendência sobre as suas vidas. As patrulhas, sem o papa, simplesmente não conseguiriam viver.
Por isso proponho: por cada camisinha distribuída durante as andanças de Bento 16, alguém deveria dar um abraço compassivo aos fanáticos, aliviando o sofrimento deles e deixando uma palavra de conforto. "Fica tranquilo, rapaz; é só o papa." A caridade cristã existe para estes momentos.

Folha de S. Paulo (27 de abril de 2010)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sade de Batina? - Luiz Felipe Pondé


PEDOFILIA ESTÁ na moda. Os "odiadores" da Igreja Católica estão em êxtase. Sempre digo que o único preconceito considerado "científico" nos jantares inteligentes é o preconceito contra a Igreja Católica.
Em jantares assim, você conta como seu pastor alemão é gostoso, como você despreza o conservadorismo dos heterossexuais, como sua alimentação é balanceada e..., é claro, como despreza a Igreja Católica, que, segundo você, é responsável pelo mercado negro de escravos sexuais (não de "escravas", é claro!), de armas e de órgãos. Reconhece-se um "odiador" da igreja pela baba que escorre pelo canto da boca cada vez que tem a chance de cuspir nela.
Nem adianta me acusar de católico reacionário porque nem católico sou. Lamento desmantelar a visão de mundo dos superficiais. Sou defensor de Bento 16? Sim, porque ele é um grande intelectual que faz diagnósticos corajosos sobre alguns males modernos. E também por outro motivo (este é segredo!): porque todo mundo parece concordar que ele não é legal.
O historiador judeu Johan Huizinga, no seu excelente "The Waning of the Middles Ages" (outono da Idade Média), narra de forma impressionante os processos de condenação e execução de hereges no final da Idade Média. Tais eventos eram um "programa de domingo" para o povo, como sempre, ansioso por manifestar seu ódio por alguém que não pode se defender. Levavam suas crianças e juntos faziam piquenique e cuspiam nos hereges.
É claro que muita gente acha chique ter sido queimada na Idade Média. Aliás, o número de gente que faz "regressão de vidas passadas" e descobre que foi queimada na Idade Média faz da Inquisição a instituição mais produtiva da história.
Segundo Huizinga, o povo cuspia nos hereges, xingava os hereges, jogava tomate neles e tinha absoluta certeza de que eles faziam sexo com o demônio e com as criancinhas.
Mas o que essa gente chique-cabeça não sabe é que o herege era uma figura mais próxima da imagem que temos hoje desses padres tarados do que figuras por quem sentiríamos alguma misericórdia.
Vejam: quando se trata de ódio de massa, pouco importa quem é inocente ou não, contanto que possamos cuspir na cara do acusado. Num caso como esse, basta a suspeita e o acusado já é culpado.
Quando leio as manifestações iradas dessa gente em êxtase porque existem padres que gostam de transar com meninos, sempre imagino como essa gente gostaria de poder gritar em praça pública: "Joga pedra na Geni!". Sempre suspeito que o que move a "indignação pública" é mais a chance de odiar (no caso, os padres tarados) do que de amar (no caso, a justiça) porque ninguém ama tão rápido assim, mas odeia na velocidade da luz. Acho inclusive que, no fundo, rezam (ironia...) para que o número de vítimas dos padres tarados aumente a cada dia. Dessa forma seu preconceito "científico" contra a Igreja Católica estará supostamente comprovado.
Sem dúvida é hora de a Igreja Católica cuidar disso. E ela o fará, porque se trata de uma grande instituição com uma história enorme de prestação de serviço à humanidade, apesar de seus erros evidentes -afinal, é humana como todos nós. Sabemos que, hoje em dia, muita gente entra na igreja sem uma seleção cuidadosa, inclusive porque ser padre ou freira hoje não é "um bom negócio" como já foi no passado.
O problema de como lidar com a pedofilia na Igreja Católica é mais um exemplo na longa lista de dificuldades que a igreja (uma instituição antiga e medieval) tem com o Estado laico moderno.
O regime moral de penitência e busca de arrependimento que organiza a relação entre crime e castigo na Igreja Católica é nulo para a justiça do Estado moderno, que é cego à lógica do arrependimento.
Por isso, a necessidade de que esses padres sejam trazidos ao tribunal do Estado, como criminosos. Claro que a possibilidade de ganhar grana pode ajudar no acúmulo das denúncias. Tudo tem seu preço, ao contrário do que os hipócritas gostam de afirmar nos púlpitos. Mas, confesso, fico com uma curiosidade. O que diriam os apaixonados leitores de Sade ou Foucault sobre esses pedófilos (padres ou não, apesar de ser mais "gostoso" xingar os padres)? Seria a pedofilia uma forma de transgressão legítima contra as normas de opressão social sobre os corpos? Humm... Por que se calam nessa hora? Por que Sade e Foucault não poderiam fazer sexo revolucionário de batina?

Folha de S. Paulo (26 de abril de 2010)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

"As Melhores Coisas do Mundo" - Contardo Calligaris


DOMINGO, NUMA conversa sobre filhos e netos, um amigo, pai de dois meninos que já têm mais de 20 anos, declarou que, graças a Deus, estava saindo da tormenta. Todos entendemos o que ele quis dizer: a relação entre pais e filhos adolescentes pode ser uma tormenta -e, às vezes, um tormento.
Essa tempestade se alimenta numa espécie de mal-entendido fundamental: 1) os adolescentes menosprezam a experiência dos adultos, 2) os adultos menosprezam a experiência dos adolescentes. Explico. 1) Para os adolescentes, em regra, os adultos (a começar pelos pais) são seres resignados (e talvez um pouco covardes), que desistiram de seus sonhos. A existência dos adultos sendo uma longa renúncia, entende-se que os entusiasmos e os sentimentos dos mesmos sejam quase sempre fingidos, inautênticos: uma encenação para um "ersatz" de vida.
Será que os adolescentes inventaram essa visão cruel e, de fato, sumária da experiência dos adultos? Nada disso: os adolescentes apenas acreditam em nossas próprias palavras. Como assim? Simples: estamos sempre prontos a salientar que a "época maravilhosa" que eles estão vivendo logo chegará ao fim e aí eles deverão se render à "triste realidade" (que seria a nossa), ou seja, eles conhecerão a desistência e o fracasso que seriam próprios da idade adulta.
Resultado: os adolescentes se surpreendem ou mesmo se revoltam quando um adulto, de repente, manifesta seu desejo. Um adolescente pode achar a mãe e o pai indignamente acomodados e chatos que nem zumbis vivendo numa sinistra rotina de deveres; o mesmo adolescente tacha de inconsequente e traidor do lar a mãe ou o pai que decide se separar para correr atrás de um amor. 2) Para os adultos, em regra, o adolescente é um ser provisório, inacabado: ele é apenas a promessa de um futuro no qual, enfim, ele viverá "de verdade".
Sobretudo na classe média, essa convicção é confirmada pelo fato de que os adultos bancam a longa adolescência dos filhos, e isso demonstraria que os adolescentes, sem independência, vivem uma época de formação, durante a qual a experiência é apenas um ensaio.
Um adolescente sofre por amor? Nosso olhar condescendente não é muito diferente do que seria se uma criança de oito anos nos dissesse estar apaixonada. Não é nada sério, é coisa de adolescente. O que um adolescente deve fazer para ser levado a sério? Nos últimos anos, em escolas dos Estados Unidos e da Europa, uma triste série de jovens saíram atirando, matando e se matando: "Será que, se eu assassinar dez colegas e três professores, alguém vai me levar a sério?", "e se eu me suicidar?". Quase todos esses jovens anunciaram seu desespero e seus planos, não em diários secretos, mas em blogs e sites que qualquer um podia acessar. Pois é, ninguém levou à sério.
Talvez a gente desvalorize a experiência dos adolescentes para compensar a inveja que nos inspiram suas vidas jovens e ainda para trilhar. Seja como for, os adolescentes retribuem nosso pouco caso considerando que somos apagados e previsíveis como o mobiliário da casa de família. Contra essa cegueira, pela qual ninguém enxerga a experiência do outro, um remédio: que você seja adulto ou adolescente, assista a "As Melhores Coisas do Mundo", o filme de Laís Bodanzky que estreou na sexta-feira passada. E, se for possível vencer a eventual resistência de todos, adultos e jovens, contra qualquer programa de família, melhor ainda: assista ao longa em bando. Garanto que o filme vai dar umas conversas boas e bem-vindas entre pais e filhos.
Os jovens gostarão de constatar que seu cotidiano vale a pena ser contado: o filme é um retrato milagrosamente exato da experiência adolescente (aliás, como a adolescência, ele consegue ser bem-humorado, divertido e, ainda, absolutamente sério).
Alguns comentaristas disseram que o tema do filme é o "bullying" na época da internet. Pode ser, embora eu prefira pensar que, simplesmente, não é fácil ir para a escola, a cada dia. E não é preciso que aconteça algo de extraordinário ou extremo para que a escola seja uma selva: para isso, basta a tarefa básica (e obrigatória para todos os adolescentes) de construir, inventar e preservar uma identidade sob o olhar impiedoso dos outros.
Mas, aquém ou além disso tudo, para mim, "As Melhores Coisas do Mundo" é um filme para os adolescentes descobrirem que os adultos ainda não desistiram de viver, e os adultos descobrirem que os adolescentes já estão vivendo, para valer.

Folha de S. Paulo (22 de abril de 2010)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Um medieval com estilo - Luiz Felipe Pondé


ACABO DE chegar de Istambul, para onde fui por razões profissionais. No avião li o belo livro "A Resistência", do escritor argentino Ernesto Sabato. Trata-se de uma peça de resistência à estupidez do mundo moderno. Sabato lamenta a ganância que nos assola sob a forma de projeto social para felicidade.
Estive em Istambul há 15 anos. Nunca esqueci a Igreja de Santa Sofia. A Turquia tem um dos maiores patrimônios arqueológicos do mundo antigo. Pena que esteja na moda.
Em 1995, andei pela Santa Sofia (eu e minha pequena família) sozinho por algum tempo, mergulhado no silêncio daquele monumento ao cristianismo antigo.
A Turquia, naquele tempo, tinha a benção de ser esquecida pelo mundo. O Cristo Pantocrator (o senhor do universo) no alto e os demais ícones bizantinos eram as únicas companhias. Hoje, a Santa Sofia parece uma Aparecida do Norte sob os pés da multidão. Se aqui são os crentes que assolam o espaço, lá são as novas formigas devoradoras do mundo, esses novos bárbaros, os turistas.
Hoje, o impasse, para quem ama conhecer o mundo, é como escapar da indústria do turismo e sua breguice de massa. O capitalismo aqui revela uma de suas maiores contradições: para ganhar dinheiro, muitas vezes, há que fazer tudo parecer a "25 de março". E, com isso, chegamos ao "progresso" da Turquia. É, a Turquia "progrediu". E o "progresso moderno" é uma praga de formigas assolando a vida.
"Progresso" é uma dessas ideias típicas da modernidade que deve ser manipulada como quem manipula o bacilo da lepra. Aos 50 anos, começo a ter aquele sentimento clássico de que o "passado" detém uma dignidade essencial. Acredito firmemente que toda redenção possível vem apenas dos mortos.
Pouco importa se as almas superficiais me taxarem de nostálgico. Ser odiado pelas almas superficiais é parte da minha ética. Ser superficial nada tem a ver com ser ignorante, muitas vezes a erudição está a serviço da superficialidade. Desprezo a democracia como forma de sensibilidade, aliás, a considero como um desses remédios necessários, mas horríveis (como quimioterapias) para uma doença humana incurável: nossa natural vocação para abusar do poder.
Prefiro almas pecadoras a almas eficazes (como diz Sabato), culpadas em sua agonia, conscientes do mal que causam no mundo, presas em suas fraquezas, aniquiladas por seu orgulho ridículo, com olhos vidrados de dor. Prefiro ser um pecador (e com isso não faço elogio a autores medíocres como Sade, mas sim me coloco sob a sombra de grandes filósofos como Santo Agostinho) a ser um "cidadão que crê no progresso".
Uma amiga minha me define, com precisão matemática, como "um medieval com estilo". As almas superficiais dirão "todo medieval é sem estilo", mas, de novo, as almas superficiais não têm a mínima ideia do que seja um medieval. Um medieval vaga por um mundo devastado, pressentindo a esperança sempre como filha do mistério. Uma espécie caçada, a cada dia, pelos superficiais crentes no progresso "humanista".
O que me encanta em Sabato é a forma que assume sua crítica, seu viés nostálgico, traço do que há de melhor no romantismo, sua dor diante da barbárie que é a sociedade da eficácia em que vivemos, sem o ridículo do filme "Avatar". Mas ele esbarrará num impasse clássico: confessemos, a sociedade da eficácia nos serve a todos com sua medicina, seus aviões, seus computadores. Abrir mão dela é abrir mão dos ganhos técnicos que ela gerou. Ninguém abre mão disso, por isso todo mundo prefere a infelicidade permeada pela higiene da solidão, porque o amor não é eficaz.
A resistência proposta por Sabato passa pela crença numa saúde espiritual, fincada em nossa vocação para o sagrado e para os valores eternos. Neste movimento, ele ataca o humanismo da eficácia e chama para si a herança de russos como o filósofo Nicolai Berdiaev (século 20). Berdiaev chamava de "nova Idade Média" a devastação da vida causada pela sociedade do progresso tecnológico. Ele era um dostoievskiano e nietzschiano e, por isso mesmo, alguém que desprezava a sensibilidade burocrática da democracia em favor da sensibilidade criadora e libertária. Os superficiais, essa maioria que infesta o mundo, dirão que isso é um desvio aristocrático. Pouco importa, mesmo que sejamos sempre derrotados, o que importa é termos a coragem de fracassar da forma que escolhermos.

Folha de S. Paulo (19 de abril de 2010)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

As pulseiras do sexo - Contardo Calligaris


BARATINHAS E divertidas, pulseiras de silicone de todas as cores foram populares nos anos 1980. Recentemente, entraram, de novo, no gosto das meninas.
Duas semanas atrás, aprendi, pela imprensa, que essas pulseiras, vendidas pelos camelôs país afora, tinham-se transformado num código sexual, no qual cada cor anuncia uma disposição de quem a veste. Por exemplo, uma pulseira azul assinala a vontade de praticar sexo oral, uma preta anuncia o desejo de ter uma relação sexual completa. Esse código vale no jogo do "snap" (arrebenta), cuja regra é que, em tese, mesmo um desconhecido, se ele conseguir arrebentar a pulseira de uma menina (nenhum esforço: o silicone é frágil), ganhará a prestação sexual anunciada pela cor do enfeite.
Como disse, soube disso duas semanas atrás. Ignorância minha: é fácil encontrar, na internet, artigos de 2009 sobre escolas médias norte-americanas que interditaram o uso das pulseiras de silicone por causa de sua significação sexual.
Como começou? Talvez com a brincadeira de um grupo de amigas fantasiando entre si no Messenger e, logo, abrindo o jogo para desafiar a timidez dos meninos. Ou pode ter sido a invenção de meninos frustrados, que brincaram de interpretar as pulseiras de suas colegas como mensagens sexuais que eles gostariam de receber. Seja como for, em poucos meses, o código das pulseiras se espalhou, mundo afora.
Certamente, muitas meninas usam esses acessórios só porque os acham bonitos. Mas há meninas usando as pulseiras por causa do código sexual. Nesse caso, o que são as pulseiras do sexo? Uma provocação de adolescentes inseguras? Ou será que elas expressam um desejo? Bom, mesmo uma provocação manifesta um desejo. Qual?
Nos anos 1970, na comunidade gay de São Francisco e de Nova York, começou o uso do código dos lenços no bolso traseiro das calças jeans: as cores correspondiam ao tipo de relação desejada, e o bolso escolhido dizia se o homem queria mandar ou ser mandado (esquerdo para os "tops", direito para os "bottoms").
A intenção do jogo não era facilitar os encontros (nas ruas do Castro ou do Village, esse problema não existia). Tampouco o uso de um lenço significava que o usuário, encontrando um "encaixe", transaria necessariamente. Então? Era fácil constatar que os lenços serviam para erotizar o cotidiano, para transformar qualquer passeio "inocente" à padaria da esquina numa possível fantasia erótica.
Coisa de homens, ainda por cima gays, obcecados por sexo? Pois bem, uma das obras-primas da literatura erótica do século 20 (que, aliás, é, sobretudo, feminina) é "História de O", de Pauline Réage (Ediouro, esgotado). No romance, a heroína aceita usar um anel que a torna reconhecível pelos membros de um clube, que são poucos e perdidos pelo vasto mundo, mas que, ao identificá-la, sabe-se lá quando e onde, terão o direito imediato de possui-la.
É desta mesma fantasia que se trata no uso das pulseiras do sexo: a fantasia de tornar erótica a trivialidade do cotidiano, cuja massa um pouco cinza, de improviso, poderia ser atravessada por relâmpagos de desejo. No fundo, as adolescentes que brincam com as pulseiras do sexo estão fantasiando com sua própria disponibilidade para a aventura da vida. E é por isso mesmo que elas encontram o ódio de quem não vive.
Nas últimas semanas, em Manaus (AM), três jovens que usavam as pulseiras foram estupradas, duas delas foram mortas. Em Londrina (PR), uma menina de 13 anos, que também usava as pulseiras, foi estuprada. Não se sabe por certo se as meninas e seus agressores conheciam o código das pulseiras. Nessas e em outras cidades, a prefeitura proibiu o uso das pulseiras nas escolas. Concordo com essa decisão preventiva, mas é espantoso que nossa sociedade seja incapaz de garantir às meninas a liberdade de andar pela rua com a alegria de quem fantasia desejar de corpo aberto.
Os estupradores e assassinos foram "provocados"? Será que as pulseiras, como os decotes e as saias curtas, suscitariam uma atração irresistível e, portanto, violenta?
Vamos parar de acusar as mulheres por elas serem estupradas. O estuprador nunca é atraído por suas vítimas; ele só tem o impulso irresistível de acabar com o desejo delas. Por quê? Por raiva de ele não estar, por exemplo, à altura do mundo com o qual fantasiam as meninas com suas pulseiras: um mundo que seja o teatro possível de mil aventuras (sexuais ou não).

Folha de S. Paulo (15 de abril de 2010)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Crianças - João Pereira Coutinho


O MELHOR do mundo são as crianças, disse Fernando Pessoa, que curiosamente não teve nenhuma. A frase do poeta não se aplica ao momento presente, vivido pelos seus compatriotas. Dois casos ilustram o ponto.
Primeiro caso: duas semanas atrás, um rapaz de 12 anos, do interior de Portugal, saiu de casa, aproximou-se das margens do rio. E saltou para a morte. Alguns amigos explicaram depois que a vida dele era um inferno nas mãos de outros colegas, que o torturavam na escola de todas as formas possíveis. O rapaz, cansado de apanhar, comunicou à tia que não aguentava mais. A tia, provavelmente, não ligou. Só os amigos assistiram ao suicídio. Não conseguiram impedi-lo. O corpo ainda não foi resgatado.
Nos dias seguintes, Portugal debateu as causas da violência escolar. Um termo elegante ("bullying") entrou no linguajar dos patrícios. E, é claro, exércitos de psicólogos foram enviados para a escola do rapaz com o nobre propósito de prestar assistência terapêutica aos agressores.
Você leu bem: aos agressores. Na minha rudeza primitiva, eu julgava que os agressores mereciam expulsão, ou coisa pior. No mundo moderno, merecem terapia. Na semana passada, os jornais lusitanos contaram outro caso recente: um professor de meia-idade que, atormentado pela selvajaria da turma, deixou uma mensagem escrita.
Ele, em depressão há dois anos, não aguentava mais os insultos e as ameaças dos alunos. Decidiu desistir. E desistiu. Saltou da ponte 25 de Abril, em Lisboa, e mergulhou nas águas do Tejo.
Os dois casos são trágicos, mas não aconteceram por acaso: sucessivas reformas educativas em Portugal, ao destruírem a autoridade dos professores, apenas prepararam o terreno para que as escolas públicas do país se transformassem em faroestes grotescos, onde as crianças não conhecem lei. E não conhecem lei porque elas são o melhor do mundo. Ou não são?
Manoel Carlos, autor da novela "Viver a Vida", responde: nem sempre. Na história de Manoel Carlos, existe uma criança, Rafaela, interpretada pela atriz Klara Castanho, de 8 anos. Rafaela é um anjo, sim, mas um anjo perverso. A vilã, no fundo, é capaz de atos reprováveis, inomináveis. Atos só possíveis em adultos. Melhor: em psicopatas adultos.
Os brasileiros não gostaram desse desconfortável fato: uma criança maldosa? O Ministério Público do Trabalho (MTP) do Rio notificou o autor para que alterasse a personagem. Agora, segundo leio na imprensa, o MTP teve nova audiência com o departamento jurídico da Globo e ainda poderá afastar a criança da novela. Exceto se o autor transformar Rafaela na versão infantil da Madre Teresa de Calcutá. Como explicar a insanidade?
As razões são duplas. Para começar, os especialistas do Ministério Público afirmam que a atriz mirim não tem capacidade para separar a realidade da ficção e isso pode ter consequências nefastas no seu desenvolvimento psíquico e social.
Hoje, a atriz tem 8 anos; mas amanhã, com 18, pode imitar os comportamentos desviantes que formaram a sua cabeça de menor.
E, para acabar, os especialistas relembram uma possibilidade prática: a personagem Rafaela é tão odiosa que pode despertar hostilidade real do público, disposto a insultá-la ou agredi-la.
Evidentemente, nenhuma das razões esconde a explicação principal: os brasileiros não toleram a imagem de uma criança má porque Rousseau triunfou no espírito dos modernos.
Triunfou no Brasil, triunfou em Portugal, triunfou em qualquer parte do mundo onde a piedosa romantização da infância apresenta qualquer membro da espécie como o exemplo acabado da Pureza e do Bem (com maiúsculas). A Pureza e o Bem que, escusado será dizer, só a constituição da sociedade política acabou por corromper com seus arranjos violentos e hipócritas.
As crianças não podem ser más; maus são os adultos e o mundo de subjugação e poder que eles construíram para aprisionar os mais fracos. Quando muito, as crianças são vítimas; e mesmo quando precipitam as maiores tragédias, elas continuam sendo vítimas. Elas continuam a precisar de exércitos de psicólogos que as compreendam em suas dores profundas.
Acreditar no mito da bondade inata dos seres humanos pode descansar e consolar as nossas consciências progressistas: as consciências dos políticos portugueses ou dos juristas brasileiros. Infelizmente, não descansa nem consola os dois corpos que jazem mortos no fundo dos rios.

Folha de S. Paulo (16 de março de 2010)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

"Mrs. Dalloway" - Luiz Felipe Pondé


MORAVA EU num kibutz em Israel. No final do dia de trabalho físico extenuante, lia na porta do meu quarto, ensaiando meus primeiros cachimbos. Durante alguns meses devorei livros da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Entre eles, um que me marcou excepcionalmente foi "Mrs. Dalloway", publicado em 1925.
Revi o maravilhoso "As Horas" (2002), com Nicole Kidman. E sempre quando vejo esse filme me lembro de como ela foi essencial, ainda que de modo pontual, em minha visão de mundo. No fundo, sempre suspeitei de que cada dia é mais um dia sob o risco de ser devorado pelo sentimento último da melancolia.
Às vezes na vida se faz necessário rompimentos com o cotidiano para que possamos ver melhor o sentido do que fazemos, ou a total falta de sentido. A vida se degrada facilmente na rotina de tentar mantê-la funcionando, por isso a derrota, como no livro "Mito de Sísifo" (1942), de Albert Camus, pode ser a condição necessária para a consciência repousar em paz consigo mesma. Vencer sempre pode ser um inferno.
Na época, atravessando minha primeira (de várias) crises com minha formação médica então em curso, busquei fugir para alguma fronteira do mundo. Trabalhei no deserto do Neguev algumas vezes e posso dizer que o pôr do sol no deserto vazio é uma experiência de dar inveja. A possibilidade de caminhar pelo deserto, como me disse certa feita o escritor israelense Amós Oz, refaz a alma porque vemos nosso rosto refletido na poeira. O deserto nos ensina a humildade, e a humildade é sempre imbatível. Humildade nada tem a ver com humilhação, mas, ao contrário, humildade fala da consciência de que somos efêmeros como o vento. E só como efêmeros que podemos perceber a dádiva que é respirar. Há um modo misterioso em como o deserto chama seu nome quando você está disposto a ouvi-lo.
Na época, já sabia que Virginia Woolf havia se suicidado e, por isso mesmo, quis conhecer sua obra. Nunca fui um deprimido clínico, mas sempre me surpreendi pelo fato de não sê-lo. Muitas vezes pareceu-me que, se fosse viver pelo que a razão me diz, já teria sucumbido à melancolia profunda. O que me encantou em Mrs.
Dalloway foi seu esforço em ser normal e feliz e acreditar em si mesma e na sua fidelidade à rotina. No dia em que se passa a história, ela organiza uma festa em sua casa. Manter a vida aí se equipara ao esforço descomunal de erguer uma festa quando, no fundo, ela se sente vazia e sem razões para festejar. Entre uma alma triste e uma rotina vazia, ela opta pela segunda como falta de escolha porque não pode confiar na tristeza.
Penso no número enorme de pessoas que se levantam pela manhã assim como quem carrega um corpo que não é seu. Mrs. Dalloway é o fim de quem ingenuamente acredita que as coisas sempre darão certo, bastando festejar a rotina comum. Não, a rotina é indiferente à nossa fidelidade, podendo nos destruir mesmo quando a servimos como a um senhor todo poderoso. O pesadelo de Mrs. Dalloway é se ver como estrangeira em sua própria alma.
Aprendemos com ela que a vida não é necessariamente bela e que tentar negar isso é uma forma de permanecer escravo de sua possível monstruosidade.
No fundo de nossa alma habitam monstros que a muito custo se mantêm em silêncio. Esses monstros, quando o mundo silencia, surgem na superfície mostrando o ridículo de nossa batalha diária.
Quantas vezes mulheres apenas suportam o choro de seus filhos, sofrendo no fundo da alma o horror que é ser obrigada a amá-los quando não sentem por eles nada parecido com amor materno, mas apenas o incômodo causado por aqueles pequenos intrusos em suas vidas.
Quantos homens sufocam diante da certeza de que já vivem uma vida sem amor, sem afeto e sem desejo, mas que isso é tudo que suportam ao lado de suas esposas. Quantos filhos sofrem por se sentir indiferentes para com o destino dos pais idosos, tentando convencer a si mesmos de que o amor pelos pais seria o certo, mas que nada conseguem além de desejar vê-los mortos e assim se sentirem livres finalmente.
Entre as funções da civilização, uma é a tentativa de calar esses monstros criando ritos, rituais, festas para celebrar a frágil vitória contra essas criaturas deformadas, atormentadas pelo completo desinteresse pela vida. A verdade é que não há como civilizá-las, a não ser ensiná-las que elas não têm lugar no mundo dos vivos e que, por isso, devem sucumbir à rotina da infelicidade como norma da vida.

Folha de S. Paulo (12 de abril de 2010)

domingo, 11 de abril de 2010

A morte do sentido - Maria Rita Kehl


O que tanta gente foi ver do lado de fora do tribunal onde foi julgado o casal Nardoni? Torcer pela justiça, sim: as evidências permitiam uma forte convicção sobre os culpados, muito antes do encerramento das investigações. Mas para torcer pela justiça não era necessário acampar na porta do tribunal, de onde ninguém podia pressionar os jurados. Bastava fazer abaixo-assinados via internet pela condenação do pai e da madrasta da Isabella. O que foram fazer lá, ao vivo? "Ver" a morte? "Lá onde moro não tem esse negócio de morte violenta. Lá só tem árvores e passarinhos", disse à TV um rapaz que viajou de Ibiúna para dormir ao relento na frente do fórum de Santana. Ele foi ver a morte.

Mas a morte não se vê de fora do tribunal. Nem pelo lado de dentro. Nem de lugar nenhum. A morte mesmo, mesmo, é aquilo que não se vê. Vê-se o corpo sem vida. Vêm-se marcas de violência, decrepitude, doença. A morte está fora de nossa capacidade, tanto de representação em imagem quanto de simbolização. Por isso (assim como o gozo sexual) ela dá tanto o que falar.

Talvez um assassino chegue muito perto de ver, frente a frente, a morte que causou. Como pode suportar? Matar alguém é um ato que rompe a tela de proteção que separa o indivíduo de um gozo excluído da consciência, da lei dos homens, da linguagem. Matar não traumatiza somente a família da vítima. Traumatiza o assassino. Não precisamos ser piedosos para reconhecer esse fato que, por si, não perdoa ninguém. Importa entender que a repetição é a resposta do psiquismo ao trauma. O sujeito que mata uma vez é compelido a repetir seu ato na busca inconsciente de sentido não só para o horror que cometeu, mas também para a identificação indelével na qual se precipitou: a de assassino.

Todos os assassinos primários deveriam ter direito a tratamento psicológico. Independente da magnitude da pena. Imaginemos quantos meninos da Febem não estão neste momento ruminando seus atos, tentando combinar o antes e o depois, sem encontrar outra alternativa para reorganizar-se psiquicamente a não ser se convencer de que são assassinos. Elaborar o trauma não diminui o mal que foi feito, mas pode minimizar a possibilidade de que repitam o ato que também os destruiu psiquicamente, além de ter destruído a vida alheia. A alternativa solitária é parar de pensar e mergulhar de vez no mal absoluto.

Volto ao julgamento dos assassinos da criança Isabella. Penso que as pessoas não torceram apenas pela condenação dos principais suspeitos. Torceram também para que a versão que inculpou o pai e a madrasta fosse verdadeira. Alguém me disse, depois do assassinato dos queridos Glauco e Raoni, que sentiu alívio ao saber que o criminoso era conhecido das vítimas. Ora essa: por quê? Afinal, um crime cometido entre amigos - ou, pior ainda, por alguém da família - não é muito mais hediondo do que a violência praticada por um estranho? Certamente sim. Quem pode se conformar com a ideia de que um pai tenha participado do assassinato da filha pequena?

O relativo alívio que se sente ao saber que um assassinato se explica a partir do círculo de relações pessoais da vítima talvez tenha duas explicações. Primeiro, a fantasia de que em nossas famílias isso nunca há de acontecer. Em geral temos mais controle sobre nossas relações íntimas do que sobre o acaso dos maus encontros que podem nos vitimar numa cidade grande. Nada mais assustador do que a possibilidade do mau encontro: um ladrão armado, nervoso, cabeça fraca, que depois de roubar resolve atirar sem saber por que, porque sim, porque já matou outras vezes e então, por que não? Morrer na mão de um semelhante a quem não se pode dizer palavra alguma.

Segundo porque o crime familiar permite o lenitivo da construção de uma narrativa. Se toda morte violenta, ou súbita, nos deixa frente a frente com o real traumático, busca-se a possibilidade de inscrever o acontecido numa narrativa, ainda que terrível, capaz de produzir sentido para o que não tem tamanho nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não faz sentido.

Até hoje não se inventou nada melhor do que as narrativas para proporcionar algum sentido para o sem sentido do real. Não é o simbólico que faz efeito de verdade sobre o real, é o imaginário. O mar de histórias, lendas, mitos, fofocas, as mil versões que correm de boca em boca, ainda que mentirosas, ainda que totalmente inventadas, promovem um pequeno descanso na loucura que é estar nesse mundo sem bússola, sem instruções de voo, sem verdade, sem amparo.

Desde que o renascimento abalou a narrativa hegemônica que a Igreja impôs ao homem medieval, as pessoas se lamentam de que o mundo perdeu sua antiga ordem. A modernidade, primeiro, pulverizou as grandes narrativas, depois tentou consolidar utopias mortíferas da razão e agora procura recobrir a face do mundo com imagens industrializadas. Mas ainda não foi capaz de inventar narrativas à altura da complexidade das forças humanas que ela própria liberou.


O Estado de S.Paulo (03 de abril de 2010)


sábado, 10 de abril de 2010

No Folhateen de 05/04/2010 - Alan Sieber

Cuidado com o peso e a forma - Contardo Calligaris

08 de abril de 2010

Quanto menos nós controlamos nossa vida, tanto mais esperamos controlar nosso peso

NA SEMANA passada, celebrando o Pessach ou a Páscoa, muitos jantaram ou almoçaram em família. Aposto que, em algum momento, diante da fartura e das guloseimas que estavam na mesa, a conversa tratou dos planos e dos esforços de cada um para manter a linha, emagrecer ou aumentar de peso (músculos, não gordura, é claro), em suma, para conseguir dar ao corpo uma forma "satisfatória".
Para essa conversa acontecer, não foi preciso que houvesse magros ou obesos ao redor da mesa. A inquietação com o peso e a forma não é efeito do estado de nosso corpo. Ela se tornou onipresente nas últimas duas ou três décadas: sua difusão coincide com o aumento dos transtornos alimentares (supostas epidemias de bulimia e anorexia), mas é, de fato, uma espécie de transtorno alimentar em si, um transtorno alimentar da conversa e do pensamento.
É citada por toda parte (sem mais precisões) uma pesquisa segundo a qual 81% das crianças (norte-americanas) de 10 anos estariam com medo de ser gordas, e 50% das meninas dessa idade declarariam estar fazendo um regime. Agradeceria aos leitores que me ajudassem a encontrar o texto original dessa pesquisa, que, segundo algumas fontes, seria do começo dos anos 90. De qualquer forma, mesmo que a dita pesquisa seja uma lenda, sua popularidade confirma um fenômeno que todos verificamos a cada dia: hoje, a forma e o peso preocupam até as crianças.
Nesta altura, seriam esperadas acusações contra nossos hábitos alimentares, contra a vida sedentária e contra os ideais impossíveis promovidos pela cultura de massa e pela indústria do regime e da forma física. Em suma, estaríamos todos pensando no peso por culpa da preguiça, do McDonald's, da Barbie e do G.I. Joe, bonecos que parecem ter sido inventados para que, desde a infância, ninguém se contente com o corpo que tem.
É com essa expectativa que li o número de fevereiro de "Counseling Today" (revista da American Counseling Association), consagrado a transtornos alimentares e imagem do corpo. Expectativa frustrada, felizmente: num longo artigo sobre a obsessão com o peso, é entrevistada uma terapeuta, Anna Viviani, que oferece uma explicação específica por nosso interesse pelo peso e pela forma com ou sem transtornos alimentares propriamente ditos.
Resumindo, ela entende assim: quando alguém sente que tudo na sua vida está fora de controle, ele sente também que os alimentos, o peso, o exercício são coisas que, em princípio, ele poderia controlar.
Tanto faz, aliás, que alguém consiga seguir um regime à risca, emagrecer ou aumentar de peso e fazer ginástica regularmente. O que importa é que as consultas, as propostas, as leituras e as conversas intermináveis sobre dieta e exercício têm um valor em si: elas mantêm viva a promessa de um controle -que é difícil, mas que é, em tese, possível.
À diferença do que acontece, em geral, com nossa vida amorosa e profissional, acreditamos (com uma certa razão) que nosso peso e nossa forma dependem de nós.
Nesse campo, podemos não fazer o necessário, mas sempre se trata de um não fazer "ainda": um dia, faremos e, quando fizermos o necessário, controlaremos nosso peso e nossa forma.

É tentador propor uma equação: quanto menos estamos em controle de nossa vida (amorosa, profissional, social e mesmo moral), tanto mais nos preocupamos com peso e forma, que, bem ou mal, podem ser controlados.
Numa direção parecida, na mesma matéria, outra terapeuta, Erica Ritzu, resume assim a fala de um paciente com transtornos alimentares: "Se você não me escuta e não deixa nunca que minha opinião conte, posso ao menos escolher não comer nada".
De repente, a greve de fome dos presos políticos pode ser um modelo para entender o que acontece nos transtornos alimentares e em nossa preocupação com peso e forma.
Certo, na greve de fome, os presos põem a vida em risco para promover uma causa (a sua própria ou outra). Mas eles também exercem, heroicamente, o que lhes sobra de liberdade; eles não são escutados, estão encarcerados, não podem nada, mas há algo que eles controlam: sua própria ingestão de alimentos. É o que sugere Anna Viviani, ao interpretar nossa obsessão com regime e exercício: quem não controla nada, pode, como último recurso, controlar sua alimentação, seu peso e sua forma.
Bom, só resta admitir que não controlamos nada, como os presos.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Mais um excelente do Pondé


De 1984 a 2010


Tiraram o cachimbo do Saci. Amante de charutos cubanos, me senti diretamente afetado


NO ROMANCE "1984", de George Orwell, o personagem principal trabalha alterando os arquivos históricos para moldar as consciências para o bom convívio social. Chegamos à época em que essa distopia (contrário de utopia) virou realidade. Só que, desta vez, pelas mãos dos herdeiros dos projetos utópicos "mais bem- intencionados".
Porém, antes, um reparo. A política é um mal necessário, mas existem formas e formas de política. A minha pode ser entendida como uma política herdada de autores como Isaiah Berlin, filósofo e historiador das ideias do século 20, judeu nascido em Riga, Letônia, radicado na Inglaterra. Em matéria de política, prefiro sempre os britânicos aos franceses ou alemães. Tal como ele diz em seu recém-publicado no Brasil "Idéias Políticas na Era Romântica" (Cia. das Letras), prefiro a liberdade à felicidade.
A felicidade se declina no plural, porque os valores são conflitantes e não acredito em nenhuma forma de resolver essas diferenças. A melhor sociedade é a sociedade na qual ninguém tem razão (ninguém sabe a verdade definitiva sobre o bem e o mal), mas um número significativo de pessoas consegue conviver razoavelmente, mesmo sem saber a verdade sobre o bem e o mal.
O furor coletivo de "verdades do bem" deve ser mantido sob controle rígido assim como delírios de um serial killer numa noite de calor insuportável. A sociedade é o lugar do apenas tolerável.
E a profecia de Orwell? Todo mundo já tinha ouvido falar que na China o governo estaria alterando os livros de história das escolas para que a Revolução Cultural Chinesa (uma das maiores monstruosidades cometidas na história da humanidade) desaparecesse da memória das gerações mais jovens. Vale lembrar que muitas das pessoas que entre nós se preparam para assumir o governo concordavam com aquelas atrocidades: matar, saquear, sequestrar gente inocente.
Mas o que dizer de países democráticos como o Canadá? Recentemente, estudantes e professores "amantes da liberdade" quase lincharam uma intelectual americana, Ann Coulter, e impediram que ela falasse numa universidade. Não ouvi nenhum dos intelectuais de plantão defendê-la. Era de esperar que muitas mulheres do mundo das letras não o fizessem, uma vez que ela é loira e gostosa, pecados imperdoáveis para intelectuais feias e azedas. A causa da fúria da "comunidade intelectual" da universidade no Canadá era porque essa loira conservadora é conhecida por não rezar na cartilha dos opressores "do bem".
O Canadá é um dos países mais totalitários no que se refere à repressão ao uso livre da linguagem e à crítica aos costumes da nova casta fascista que empesteia o mundo.
Lá, de repente, você pode ser preso porque usou uma palavra que esta casta julga inapropriada. Toda vez que estamos diante do controle oficial da língua, estamos diante de um regime opressor.
Mas fiquemos em nossa cozinha e deixemos os canadenses afogados em seu fascismo do detalhe.
Outro dia vi na mão de uma colega uma foto do "novo Saci". Tiraram o cachimbo da boca do Saci. Eu, que sou um amante de cachimbos e charutos cubanos (e viva la Revolución!!), me senti diretamente afetado. Meu irmão de fé, o Saci, está sendo reprimido. A ideia é que, com cachimbo, ele é um mau exemplo para as crianças. Imagino que esses caras acham que bom exemplo é mulher vestida de homem coçando o saco.
Outro caso recente é a perseguição a velhas cantigas de roda e histórias infantis. Por exemplo, o "atirei o pau no gato" deve virar "não atire o pau no gato" para que as crianças não cresçam espancando gatos por aí. O fascismo "verde" chega ao ponto de tirar das crianças uma música divertida para torná-las defensoras dos gatos.
Lembro-me de meninas na minha infância que cantavam essas músicas e ainda assim choravam quando os meninos ensaiavam torturar pequenos animais só para vê-las chorar e assim chegar perto delas. Como era bom jogar baratas mortas no lanche das meninas só para ver elas pularem deliciosamente das suas cadeiras em lágrimas.
O Lobo Mau não pode mais ser mau e comer a vovozinha da Chapeuzinho Vermelho. Muito menos o Caçador pode salvá-la, porque estaria estimulando às meninas sonharem com príncipes encantados. O novo fascismo quer que os lobos sejam bonzinhos (pobres lobos) e que as meninas não sonhem com caçadores que as protejam (coitadas). Sim, 1984 é agora.

Luiz Felipe Pondé

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Artigo de Contardo Calligaris


Pedófilos, celibatários e infalíveis

Os padres pedófilos são minoria, mas a igreja como instituição trata fiéis como crianças


EM 2002, graças a uma série de artigos do "Boston Globe", estourou, nos EUA, o escândalo dos abusos sexuais de crianças por padres católicos. Desde então, uma onda de denúncias varre a Igreja Católica no mundo inteiro.
Última revelação, no "New York Times" da quinta passada: nos anos 1990, quando ele comandava a Congregação da Doutrina e da Fé, o atual papa, Bento 16, suspendeu o julgamento de um padre americano, acusado de molestar 200 meninos surdos, de cujos espíritos e almas, em princípio, ele devia cuidar.
Aos meus olhos, nesta história que não acaba, o escândalo maior talvez não seja o abuso das crianças, mas o comportamento oficial da igreja: de maneira consistente e repetida, ela parece colocar seu interesse institucional acima de qualquer consideração moral. Escândalo, mas sem surpresa alguma: em geral, o projeto dominante de qualquer instituição é o de durar para sempre.
Mas trégua: não escrevo esta coluna para me indignar. Prefiro contribuir ao debate do momento com duas observações, sugeridas pela psicopatologia e pela clínica.
1) Da conversa de botequim até o pronunciamento de um teólogo que admiro (Hans Küng, na Folha de 21 de março), os abusos sexuais de crianças por padres católicos reavivam as críticas contra o celibato dos padres.
Cuidado, não sou um defensor do celibato dos padres. Ao contrário, parece-me que a experiência de amar e conviver melhoraria a qualidade dos ministros da igreja, porque a tarefa de ser consorte ensina uma humildade que é difícil alcançar na solidão, seja ela orgulhosa e casta ou, então, envergonhada e masturbatória. No entanto, acho bizarro que o fim do celibato dos padres seja apresentado como remédio contra a pedofilia.
Essa ideia surge de uma visão hidráulica do desejo sexual, como se esse fosse um rio que, se for impedido de correr no seu leito natural, encontrará todo tipo de caminho torto e desviado. Por essa visão, na ausência de esposa, a libertinagem, não tendo para onde ir, transborda e acaba banhando (quem sabe, afogando) as crianças; portanto, os padres pedófilos não precisariam recorrer a meninos e meninas se dispusessem de uma mulher com quem saciar seus apetites.
É raro que eu me expresse de maneira tão direta, mas é preciso dizer: essa ideia é uma estupidez. Fantasias e orientações sexuais nunca são o efeito de acumulação de energia sexual insatisfeita. Um pedófilo poderá, eventualmente, desejar uma mulher e casar com ela, mas o fato de cumprir, mesmo com afinco, o dever conjugal não o livrará das fantasias pedofílicas. Teremos, simplesmente, pedófilos casados, em vez de solteiros.
Não vejo o que ganharíamos com isso, mas vejo, isso sim, na própria proposta, um desprezo inacreditável pelas mulheres que se casariam para servir de válvulas de escape para a "depravação" dos seus maridos. Ninguém merece.
A quem propõe o casamento como solução para a pedofilia dos padres, uma sugestão: proponha um programa compulsório de transa diária com a boneca inflável do Geraldão. Será tão ineficiente quanto o casamento, mas, ao menos, as mulheres serão poupadas.
2) Não é exato dizer que pedófilo é quem gosta de "carne" jovem. Pois o que importa ao pedófilo, o que é crucial na fantasia, é induzir a vítima a aceitar algo que ela desconhece e não entende. A jovem idade da vítima é sobretudo garantia de sua inocência e ignorância, ou seja, do fato de que a vítima não entenderá o que lhe será feito.
Por exemplo, um dos padres denunciados em Boston, em 2002, explicou que seu prazer consistia não tanto em ser satisfeito oralmente por um menino quanto em convencer o menino de que essa era uma forma especial de santa comunhão, que ele, o padre, ensinava e administrava.
Em suma, o pedófilo encontra seu prazer iniciando os ignaros e exercendo sobre eles um poder pedagógico absoluto. Agora, considere o jeito como a Igreja Católica tratou seu rebanho, até ser forçada a reconhecer a culpa de alguns de seus ministros. Considere a prática recorrente de camuflar decisões administrativas em dogmas divinos, considere a repressão teológica em lugar do diálogo e ainda considere a doutrina da pretensa infalibilidade do pontífice. Pois bem, aparentemente, os padres pedófilos são pequena minoria, mas a igreja como instituição trata mesmo seus fiéis como criancinhas.


CONTARDO CALLIGARIS
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