terça-feira, 27 de julho de 2010

Do ponto de vista da pedra - Luiz Felipe Pondé


NUMA MADRUGADA, afundo em cigarros e insônia. Na TV a cabo, cenas de um filme chinês, "2046 - Os Segredos do Amor", fotografia de cores fortes, músicas incomuns, mulheres lindas, ancas deliciosas que sobem e descem escadas e se arrastam entre os lençóis. O filme não deixa de ser uma ode a esse antigo vício que muitos de nós, homens, temos: a paixão pelas mulheres e a mistura de afetos que as atormenta, a beleza insustentável, a forma infiel do corpo, o tédio incurável.
Uma chinesa se apaixona por um japonês. Seu pai a proíbe de amar o japonês, afinal o ódio aos horrores da guerra causados pelos japoneses justifica sua fala. O ano é 1967.
Ele volta para o Japão. Ela enlouquece, adoece, é internada. Põe-se a falar sozinha, definha sob a opressão da saudade. Vaga pelo quarto abraçando sombras.
E, aí, o filme me ganha definitivamente. Sim, eu sei que pessoas saudáveis não sofrem assim. Mas, em minha obsessão pelos que morrem de amor, não consigo admirar quem resolve bem a vida. Tenho certa paixão por quem fracassa no combate ao afeto. Certamente, tenho algum trauma primitivo, daqueles que fundam nossa personalidade despertando nossa alma.
Tem gente por aí que se julga inteligente porque não acredita na existência da alma -pobres diabos. Eu sei que podem me achar excessivamente cético, mas eu só acredito em Deus e na alma. Em mais nada. Eu, aliás, confio mais em almas penadas. Que assustam os sonhos à noite. Sim, eu sei. Melhor aqueles que tomam remédios, fazem terapias objetivas, meditam 15 minutos diariamente e viram budistas. Mas eu me encanto facilmente por gente que, como essa heroína chinesa, adoece de amor.
Vagando pela casa tentando relembrar cada palavra dita, cada cheiro, cada silêncio, cada gosto na boca, o toque da língua, a saliva, escorrendo a mão pelos seios, numa dança doce e macabra de acasalamento. Sozinha, beijando as paredes. O rosto coberto de lágrimas, os olhos vidrados, a boca salgada, a voz rouca de tanto gritar sozinha para os céus.
A incompreensão de todos à sua volta por tamanha incapacidade de se tornar indiferente ao amor morto. Sentir-se como uma folha esmagada contra o chão, elevada pelo vento, seca de tanto afeto, evocando a misericórdia dos deuses, eis minha fenomenologia do amor.
Lembro-me do conto de Edgar Allan Poe "A Queda da Casa de Usher". Não me esqueço da doença que afeta o irmão e a irmã Usher. O talento monstruoso do melancólico Poe esmaga o leitor de sensibilidade diante da morbidez do amor impuro entre os irmãos Usher, fundando uma cumplicidade de segredos na distância entre os séculos.
A degeneração mortal dos irmãos se materializa numa sensibilidade insuportável para com os detalhes concretos da existência física. As roupas pesam na pele, os sons das palavras faladas em voz baixa rasgam os ouvidos, o paladar da língua é ferido pelo gosto sem gosto do alimento, a claridade de um dia sombrio ofusca a pupila infeliz diante do peso da luz, o ruído das relações humanas tortura o lento passar das horas, até as pedras das paredes da casa de Usher são agonia.
Miseráveis irmãos buscam a nudez, o silêncio, a fome, a escuridão, a solidão como cura. A vida, pouco a pouco, se torna morte, buscando o impossível repouso na ânsia de se fazer também pedra.
Amar é estar impregnado de uma presença, como o acúmulo dos anos se torna limo entre as pedras. Como uma forma de infecção invisível que une corpo e alma no desejo.
Sim, eu sei que se trata de um modo ruim de viver. Devemos fazer o culto da vida saudável. Mas não consigo. Encanta-me a personagem que perde a batalha contra si mesma como minha chinesa insone.
Morbidez? Pouco importa. Fôssemos apenas um bando de mamíferos alegres, ao longo de nossos milhares de anos de existência, não sobreviveríamos. A dor é que nos adapta ao ambiente hostil.
O "direito à felicidade" é a nossa grande falácia: hoje somos superficiais até do ponto de vista das pedras. Já Tocqueville, no século 19, temia que a "mania da felicidade" tornasse todos nós os tolos do futuro. Amém.

Folha de S. Paulo (26 de julho de 2010)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Divórcios contagiosos - Contardo Calligaris


MUITOS RECÉM-SEPARADOS se queixam (com razão) de que sua relação com os amigos de antes não é mais a mesma. Não é tanto porque, diante de uma separação ou de um divórcio, os amigos se dividiriam em dois times opostos. Isso é raro.
Mais frequentemente, os casais que eram próximos do casal que se separou tendem a evitar qualquer um dos recém-separados.
Às vezes, os desquitados entendem seu afastamento como uma condenação moral por eles terem se separado. Isso lhes resulta intolerável, vindo de amigos que, em muitos casos, foram confidentes ao longo do drama da separação.
Outras vezes, os desquitados entendem que os casais de amigos, ao se afastarem deles, protegem-se contra alguma tentação erótica. É o cúmulo, eles dizem: se a simples aparição de um desquitado ou de uma desquitada é suficiente para ameaçar o casamento, talvez devessem fazer como a gente, separar-se.
Uma pesquisa recente, de R. McDermott, J. Fowler e N. Christakis (http://migre.me/Y90v), mostra que os casais talvez tenham alguma razão quando decidem fugir dos amigos desquitados, pois separações e divórcios não são apenas dramas privados (que afetam o casal e seus rebentos), mas são também fenômenos coletivos porque, curiosamente, eles são contagiosos.
Os autores da pesquisa usaram o banco de dados de um estudo (originalmente sobre o risco de doença cardíaca) que acompanha a população de Framingham, EUA, desde 1948. Para a segunda geração de pesquisados (5.124 indivíduos), entre outras informações, continuam sendo anotadas, a cada dois anos, as diferentes listas dos que cada um identifica como seus amigos, parentes, vizinhos e colegas. Obviamente, muitos dos que são indicados nas listas fazem, eles mesmos, parte da amostra da pesquisa.
Recortando os dados, os autores constataram que as chances de um indivíduo se divorciar aumentam em 75% quando ele se relaciona diretamente com alguém que está se divorciando ou acaba de se divorciar. Quando o desquitado está a dois graus de separação (ou seja, é o amigo de um amigo), o efeito é menor, mas permanece: as chances de nosso indivíduo se divorciar aumentam em 33%.
Será que a causa disso seria a ruína que a sedução erótica exercida pelos desquitados levaria ao casamento dos outros? Ou será que os próximos que se divorciam nos parecem mais alegres e nos tentam com a imagem de sua nova vida? Uma leitura atenta da pesquisa permite afinar a explicação.
De fato, o aumento de 75%, que mencionei antes, é a média dos efeitos diferentes produzidos pelo divórcio de amigos, parentes, colegas e vizinhos. Quando o "amigo" de alguém se divorcia, a probabilidade de esse alguém também se divorciar dentro de dois anos aumenta em 147%. E, no caso do divórcio de parentes, colegas e vizinhos, quase nada acontece. Em outras palavras, o "contágio" do divórcio funciona mesmo entre amigos e, fato significativo, numa direção apenas: o divórcio se transmite de quem é identificado como amigo para quem assim o identifica. Explico.
As relações de amizade registradas pela pesquisa são, em grande parte, não recíprocas: os que fulano indica como seus amigos não indicam fulano como amigo deles. Entende-se que muitos identificam como "amigos" não seus reais companheiros de cada dia, mas indivíduos que eles admiram, que eles gostariam que fossem seus amigos.
Esse tipo de "amigo", idealizado (e duvidoso), é sempre o porta-estandarte de nossos devaneios. Se ele se divorciar, será, automaticamente, para nós, o exemplo (tentador) da felicidade livre e solteira à qual receamos ter renunciado.
Pouco importa que, eventualmente, o tal amigo lamente amargamente a solidão; preferiremos pensar que ele está vivendo um de nossos sonhos frustrados. Invejá-lo é a revanche contra o que não dá certo (e sempre há algo que não dá certo) em nosso casamento. Invejá-lo e, quem sabe, querer imitá-lo.
Moral da história. Para preservar seu casamento, não é preciso afastar seus amigos recém-separados. Basta (e é mais saudável) parar de identificar como amigos indivíduos que não incluiriam você na mesma categoria.

Folha de S. Paulo (22 de julho de 2010)

Beleza espanhola - Luiz Felipe Pondé


A Copa do Mundo acabou. Mas fiquei feliz com esta por uma razão especial: o bem venceu, o futebol da Espanha. E não o horroroso futebol de "resultados".
É claro que torço pelo Brasil. Não sofro dessa afetação de se "europeizar" na Copa, reeditando o velho preconceito de vira-lata do qual nós brasileiros sofremos.
Sempre que o Brasil é eliminado, me movo por parentesco cultural. Sim, tenho "sangue francês", o que sempre dá a França um lugar em meu coração de cangaceiro.
Aliás, concordo com a grande sacada de humor do colega Juca Kfouri: acho que naquele intervalo do primeiro para o segundo tempo do jogo com a Holanda, nosso treinador mandou o time parar de jogar bem e voltar ao futebol covarde e horroroso.
Depois da nossa amarelada diante da laranja, passei a torcer por meus "irmãos culturais". Torci pela Argentina do passional Maradona contra a Alemanha e sofri de verdade com os 4 X 0 que ela tomou. Torci pelo corajoso Uruguai contra Gana, contra a Holanda e contra a Alemanha.
Eliminados los hermanos, fiz da Espanha meu time. Por duas razões.
Sempre que viajo por aí, quando chego a Portugal ou a Espanha, começo a me sentir em casa. A língua, o barulho, a bagunça, a comida, as maravilhosas mulheres espanholas, enfim, a paixão dos ibéricos me lembra o Brasil, minha casa.
Gosto dos nossos ancestrais. Sim, sim, sei que ingleses são mais "chiques"" para quem se sente vira-lata.
Mas não para mim. Talvez esteja ficando velho, mas cada vez mais gosto do que é "meu". E o que é mais importante na vida, muitas vezes o é justamente porque não escolhemos.
Torci apaixonadamente pela Espanha contra a Alemanha e contra a Holanda.
Se uma das razões de ter feito da Espanha meu time entre europeus foi o parentesco cultural que sinto por ela, a outra razão foi mais filosófica. Como disse na abertura desta coluna, na Copa da África do Sul, venceu o bem contra o mal, e o bem era a arte da Espanha.
Seu futebol corajoso, ofensivo, generoso, bailado (ainda que com poucos gols) bateu a lógica científica das últimas Copas do Mundo.
Eu que acompanho Copas do Mundo desde 1966, vi (como todo mundo) a Copa virar um desfile da covardia matemática dos "idiotas da objetividade", como dizia o grande Nelson Rodrigues, e como citou recentemente o craque camisa nove da seleção tricampeã de 1970, e colunista desta Folha, Tostão, o filósofo discreto.
O mal no futebol, além das mazelas capitalistas que o afetam (mas que tem um lado bom que é reconhecer o esforço profissional dessa moçada que a ele se dedica), é esse joguinho sem vergonha de ficar o tempo todo na retranca, com medo de perder, mergulhado nesta ética da covardia estatística que toma conta do mundo dia a dia.
O mesmo tipo de covardia de que eu falava na semana passada nesta coluna (12/07) e que deixa a vida chata, deixou o futebol chato.
Enganam-se aqueles que acham esse assunto "menor": a busca da saúde total é um mal sim político, pois é parente da pureza tirânica fascista e não mera modinha.
Como o futebol chato que busca apenas "resultados", a saúde total busca uma vida pautada pelos "resultados fisiológicos" e não pelos prazeres do mundo.
Esta Folha acertou em cheio ao dizer que "o futebol agradece" com a vitória espanhola nesta Copa. Isso deve ser repetido à exaustão na mídia, nas escolas, na publicidade, na novela das oito, porque a beleza na vida nunca é irmã gêmea do medo, mas sim irmã gêmea da coragem. E o medo deixa tudo feio.
E aqui, como todo mundo sabe, o esporte traz à luz seu profundo caráter de mimetizar, como que num pequeno laboratório, grande parte da vida.
O que vale na vida não é o resultado (ainda que seja necessário ter coragem para viver assim, porque a vida foi, é e sempre será uma guerra de morte), mas a beleza que a ela somos capazes de dar, como já dizia Platão no seu diálogo "O Banquete": o destino de Eros (amor) é engendrar a beleza no mundo.
O time espanhol mostrou, de forma elegante, que a beleza ainda vale a pena e que os covardes e feios podem não ser o herdeiros da Terra.

Folha de S. Paulo (19 de julho de 2010)

Dois jeitos de viajar - Contardo Calligaris


NO FIM da adolescência, eu não queria mais viajar com meu pai, pois gostávamos de viajar de jeitos diferentes. Eu entendia essa diferença pensando nos estilos opostos de George Byron e John Ruskin, dois grandes amantes de Veneza.
Byron dedicou a Veneza o quarto canto de "Childe Harold's Pilgrimage" (a peregrinação do cadete Harold), cujos primeiros versos, "Parei em Veneza, sobre a Ponte dos Suspiros etc.", ainda são declamados por hordas de jovens românticos, quando olham para a dita ponte.
O curioso é que, em "Childe Harold", Veneza é apresentada como uma ruína solene e grandiosa. De fato, Byron não tinha interesse algum pela arquitetura e pelas artes. Ele gostava de acumular experiências e tolerava os monumentos apenas se eles fossem animados por uma boa história.
Byron ficou em Veneza de 1816 a 1819, primeiro nas Frezzerie, no apartamento de um alfaiate de cuja mulher ele era o amante, logo, a partir de 1818, num palácio, onde acumulou bichos exóticos, carnavais e gonorreias. Mais próximo de sua real experiência veneziana, Byron escreveu "Beppo" (Nova Fronteira), que é um extraordinário e divertido poema narrativo.
Ruskin, 30 anos mais tarde, encontrou uma Veneza totalmente desertada pelos restos da festa do século 18. De qualquer forma, já por índole, Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos.
Todos nós, quando viajamos, somos um pouco Ruskin e um pouco Byron. Mas meu pai era mais Ruskin, e eu, mais Byron.
Ora, acabo de voltar de Veneza e, no último dia, tive um encontro do qual Byron teria gostado (Ruskin também, só que menos).
Sou um leitor das aventuras de Corto Maltês, os quadrinhos de Hugo Pratt (em português, pela Pixel). No fim de "Favola di Venezia", Pratt, perdido num emaranhado de personagens e situações, declara que existem, em Veneza, "três lugares mágicos e escondidos: um está na calle do Amor dos Amigos; outro, perto da Ponte das Maravilhas; o terceiro, na calle dos Marranos, perto de San Geremia no Gueto".
Quando os venezianos estão em apuros, eles procuram esses lugares secretos e, "abrindo as portas que estão no fundo dos pátios, vão-se embora para lugares lindíssimos e para outras histórias". Corto Maltês bate numa porta e diz: "Sou Corto Maltês, deixo esta história e peço para entrar numa outra, num outro lugar". Pronto, ele começa uma nova aventura.
Um propósito de minha estadia veneziana era de encontrar os três lugares. Deixando de lado a calle dos Marranos (que não consigo identificar), entrei em todos os pátios nos arredores da Ponte das Maravilhas e do Ramo do Amor dos Amigos. Mas como saber quais eram as portas mágicas?
O livro "La Guida di Corto Maltese alla Venezia Nascosta" (o guia de C. M. à Veneza escondida), de G. Fuga e L. Vianello (Rizzoli, existe também em inglês), é perfeito para passear por Veneza num estilo mais Byron que Ruskin. Mas a leitura não me ajudou a encontrar as portas.
Finalmente, na tarde de sábado passado, na livraria AcquaAlta, na Longa Santa Maria Formosa, conversei com um senhor de barba branca, que estava folheando uma aventura de Corto Maltês. Imaginei que ele pudesse ter sido um amigo de Pratt, dos anos 1970, companheiro das noites no restaurante Graspo de Uva.
O fato é que ele se lembrava da história dos três lugares de Veneza e, quando lhe perguntei se ele saberia indicar as famosas portas, ele me respondeu: "A mim me parece" (é assim que fala um veneziano) "que, se você as procura, é que você já as encontrou". E logo ele se foi.
Como interpretar essa frase a la Pascal? Entendi assim: se eu acreditava numa ficção a ponto de procurar os lugares que ela inventa, eu não precisava de mais nada para passar de uma história a outra. Pois o segredo é inventar.
Pensei que Ruskin teria gostado da ideia de procurar os lugares mencionados por Pratt, mas só Byron teria aberto as portas. Ele, aliás, não parava de abrir portas e fugir para novas histórias. Vai ver que, em Missolonghi, quando sumiu, aos 36 anos, combatendo pela independência da Grécia, ele não morreu, apenas abriu mais uma porta. E foi para outra.

Folha de S. Paulo (15 de julho de 2010)

100% - Luiz Felipe Pondé


Atenção, pecadores e viciados em sexo, comida, bebida, dinheiro e poder: vocês estão ultrapassados. Há uma nova ganância no ar: a mania de qualidade de vida e saúde total. Esta ganância é o que o jornal "Le Monde Diplomatique" já chamava de "la grande santé" ("a grande saúde") nos anos 90. A mania de ter a saúde como fim último da vida.
Acho isso antes de tudo brega, mas há consequências mais sérias que um simples juízo estético para esta nova forma de ganância. Consequências morais, políticas e jurídicas: o controle científico da vida.
Agora esses fanáticos estão a ponto de demonizar o açúcar, a gordura e o sódio. Querem fotos de gente morrendo de diabetes no saco de açúcar ou de ataque cardíaco nas churrascarias. O clero fascista da saúde não para de botar para fora sua alma azeda.
Mas, como assim, ganância? Sim, esta ganância significa o seguinte: quero tirar do meu corpo o máximo que ele pode me dar. Inevitavelmente fico com cara de monstro narcisista quando dedico minha vida à saúde total. Sempre sinto um certo ar de ridículo nesses pais que obrigam seus filhos a comer apenas rúcula com pepinos e cenoura desde a infância.
Suspeito que os "purinhos", no fundo, se deliciam quando veem fumantes morrerem de câncer ou carnívoros morrerem do coração. Sentem-se protegidos da morte porque vivem como "pombinhos da saúde". São medrosos. A vida é desperdício, e ganancioso não gosta disso.
No caso da morte, probabilidade é como gravidade: 100% de certeza. Logo, a luta contra a morte é uma batalha perdida, nunca uma vitória definitiva.
Se você não morrer de acidentes (carro, avião, atropelamentos, assaltos, homicídios) ou de epidemias (tipo pestes) ou por endemias (tipo doença de chagas), ou de doença metabólica (tipo diabetes) ou de doenças cardiovasculares (tipo AVC ou acidente cardiovascular e ataque cardíaco), você sempre morrerá de câncer.
Claro, ainda temos contra (ou a favor) a tal herança genética. Você passa a vida comendo rúcula e morre de AVC porque suas "veias" não valem nada. Que pena, passou uma vida comendo comida sem graça e morreu na praia. E vai gastar dinheiro com hospital do mesmo jeito, ou, talvez, mais ainda. Sorry.
Logo, caro vegetariano, escapando de doenças cardiovasculares porque você evitou (religiosamente) gorduras supostamente desnecessárias, você pode simplesmente morrer de câncer porque deu azar com o pai que teve ou porque, no fim, tudo vira câncer, não sabia?
Um dia, esses maníacos da saúde total desejarão processar os pais por terem deixado que eles comessem coxinhas e brigadeiros quando eram crianças ou porque simplesmente tinham maus genes em seus gametas.
Sinceramente, não estou convencido de que viver anos demais seja muito vantajoso. Sem "abusar" da comida, da bebida, do tabaco, do sexo, das horas mal dormidas, não vale a pena viver muitos anos.
A menos que eu queira ser uma "freira feia sem Deus", o que nada tem a ver com freiras de verdade, uso aqui apenas a imagem estereotipada que temos das freiras como seres chatos, opressores e feios , ou seja, uma pessoa limpinha, azeda e repressora.
Como diz meu filho médico de 27 anos, "nunca houve uma geração tão sem graça como esta, obcecada por viver muito". Eu, pessoalmente, comparo esta geração de pessoas obcecadas pela saúde àqueles personagens de propaganda de pasta de dentes: com dentes branquinhos, cabelos bem penteados e com cara de bolha (ou "coxinha", como se diz por aí).
Dei muita risada quando soube que alguns cientistas estavam relacionando câncer de boca à prática frequente de sexo oral. Será que sexo oral dá cárie também? Terá a vida sentido sem sexo oral? Fazer ou não fazer, eis a questão!
Essa ciência horrorosa da saúde total deverá logo descobrir que sexo oral faz mal, e aí, meu caro "pombinho da saúde", como você vai fazer para viver sendo perseguido pela saúde pública? Talvez, ao final, não seja muito problema para você, porque quem é muito limpinho não deve gostar mesmo dessa sujeira que é trocar fluidos e gostos por aí.

Folha de S. Paulo (12 de julho de 2010)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Preços e valores - Contardo Calligaris


QUANDO PASSO por Veneza, sempre visito a livraria antiquária Linea d'Acqua, na calle della Mandola, uma das últimas que sobram na cidade.
Não sou mais colecionador (vendi minha biblioteca quando deixei os EUA, em 2004), mas os livros antigos continuam sendo, para mim, uma fonte de prazeres sensoriais e intelectuais. Gosto de manuseá-los e gosto de conversar sobre edições, encadernações etc.
Passei um tempo com Luca Zentilini, o livreiro de Linea d'Acqua, examinando dois livros.
Um era a primeira edição de "The Stones of Venice", de Ruskin: três volumes, publicados entre 1851 e 1853, in-oitavo, na encadernação original da editora. Não faltava nenhuma das numerosas pranchas (muitas aquareladas) que reproduzem os desenhos arquitetônicos originais de Ruskin.
"As Pedras de Veneza" (Martins Fontes) tornou-se e continua popular (em todas as línguas) numa versão reduzida, que permite levar o volume consigo na mala. Mas, cuidado, o livro não é apenas um extraordinário guia de viagem, é também das grandes obras do século 19.
A edição original, nunca reimpressa, foi de menos de mil exemplares. Quantos desses conjuntos de três volumes ainda existem?
O outro livro que Zentilini me mostrou era a edição de Francesco Franceschi do "Orlando Furioso", de Ludovico Ariosto. Quem não conhece essa maravilhosa edição, de 1565, veja uma página em http://migre.me/Ue6o. O exemplar era perfeito, com todas as gravuras.
O livro de Ruskin custava 2.000 (R$ 4.450). A edição de 1565 do Ariosto custava o dobro.
Caros? Sim, certo. Só que, não muito longe de Linea d'Acqua, na calle Larga 22 Marzo, não faltam clientes para vestidos ou acessórios produzidos em série, que custam tanto quanto um Ariosto de 1565, se não mais.
Justamente, foi no começo do século passado que as bibliotecas começaram a ser dizimadas por seus próprios donos. Arrancar páginas de um livro antigo acaba com a integridade da obra (e também com seu valor de revenda), mas, convenhamos: páginas emolduradas podem ser mostradas, ostentadas. Ou seja, uma gravura na parede vale mais que um livro com todas suas gravuras, fechado, na estante.
Em Verona, na via Dietro San Sebastiano, há uma alfaiataria e camisaria napolitana (na Itália, isso é um pleonasmo: em alfaiataria, napolitano significa tradicional).
O alfaiate me explicou que propõe dois tipos de camisa, ambas nos mesmos algodões "doppio ritorto". O tipo mais barato é confeccionado a máquina, salvo, "obviamente", para a costura que segura a manga à camisa e que deve sempre, imperativamente, ele explicou, ser feita a mão, sob pena de uma "desconfortável rigidez".
O outro tipo de camisa é inteiramente costurado a mão, o que garante uma mobilidade e um caimento que uma camisa costurada a máquina nunca terá. Pois bem, o preço de uma camisa costurada a mão é de 100 (R$ 222).
Enquanto o alfaiate napolitano e eu levávamos essa conversa na alfaiataria deserta, a via Mazzini, a poucos metros de lá, estava abarrotada de turistas comprando camisas mais caras, fabricadas nos quatro cantos do Oriente e, às vezes, em tecidos sintéticos duvidosos.
Perguntei ao alfaiate por que, ao seu ver, os clientes preferiam as lojas da via Mazzini ao seu ateliê. Ele respondeu, com sabedoria certa.
Primeiro, há a necessidade da satisfação imediata: o consumidor quer pagar e levar para casa (nada de encomendar, tirar as medidas do corpo, esperar a primeira e a segunda prova etc.).
Segundo, e mais importante, os produtos das lojas da via Mazzini têm algo que suas camisas e seus ternos não têm. Imaginei que ele fosse me confessar alguma inferioridade de seus artefatos, mas ele acrescentou apenas: "Os produtos da via Mazzini têm uma marca, uma marca que todas as pessoas reconhecem".
P.S.: Para Clóvis Rossi e os amigos que pediram que comentasse a derrota de seleção. Depois do jogo contra a Holanda, postei isto no meu Twitter (@ccalligaris): 1) às vezes a gente ganha, às vezes não; 2) ganhar não é um direito natural nem adquirido; 3) o Brasil é mais do que uma seleção de futebol.

Folha de S. Paulo (08 de julho de 2010)

A viúva e o cowboy - Luiz Felipe Pondé


NÃO GOSTO de arte como ferramenta de cidadania. Uma palavra que, com o tempo, passou a me encher o saco foi "cidadania".
"Faixa cidadã" (faixa para motocicletas), "teologia cidadã". Desta, então, eu não tenho a mínima ideia do que seja.
Talvez (arrisco uma hipótese, toda minha, mas inspirada no que poderia ser a defesa da "cidadania bíblica dos gays"), seja uma releitura da Bíblia a partir da "Queer Theology" ("teologia bicha")? Ou seja, quem sabe Jesus e seus discípulos formavam uma comunidade gay e a traição de Judas teria sido uma crise de ciúmes porque Jesus preferia "meninos" como João. Humm...
Tem mais: "Pedagogia cidadã" (seria: "Não reprove ninguém, respeite os direitos dos alunos não saberem nada da matéria e permitam que eles construam as avaliações coletivamente"), ou "geografia cidadã" (no lugar de ensinar a localização dos países na aula de geografia, obrigue os alunos a saberem de cor a gloriosa história do sindicato dos boias-frias), ou "sexo cidadão" (deve ser sexo sem invadir a intimidade do/a outro/a!!).
Nem o coitado do Rousseau (e seus tarados jacobinos), que amava a humanidade, mas abandonou os filhos e a esposa, imaginou que levassem tão longe seus pobres delírios em suas caminhadas solitárias.
E o pior é a história do "voto cidadão" e "a festa da democracia para a qual o título é seu convite". Sou obrigado a votar e ainda chamam isso de "direito cidadão". Quer saber? Deixem-me em paz e não me obriguem a votar. Acho que o voto deveria ser facultativo no Brasil, como é na maioria dos países civilizados do planeta.
Mas eu dizia que não gosto desse negócio de arte como ferramenta de cidadania. Por quê? Porque faz da arte coisa de retardado.
Antes de tudo, nada contra o uso de arte nas escolas. Mas, é claro, a maioria de nós (incluindo a mim mesmo que não sei desenhar nem uma casinha) não é capaz de qualquer arte. Este papo de que "todo mundo tem uma competência que lhe define" é conversa mole de pedagogo de autoajuda.
Melhor logo dizer que o universo conspira a favor de todos os alunos e que basta se concentrar que você vira Da Vinci ou Shakespeare. A história do mundo, seja ela artística, política, econômica, social ou científica, sempre foi feita por alguns poucos seres humanos. A maioria nunca fez nada além de tocar sua vidinha medíocre e continua assim, afora a "publicidade cidadã".
Num sábado de preguiça, eu e minha bela esposa assistimos na TV a um filme de cowboy, desses antigos nos quais homem é homem e mulher é mulher (que saudade...), com James Stewart, Rachel Welch, Dean Martin e George Kennedy chamado "O Preço de um Covarde".
Nada deste papo furado de "filme cidadão", onde as mulheres lutam com espadas para provar que são iguais aos homens (ou melhores do que os homens), ou heróis se emocionam diante de uma lagartixa em agonia ou lutam em favor de um país africano onde todo mundo é santo, menos os brancos interesseiros. Enfim, essa arte com compromisso social é sempre lixo.
O filme apresenta a vida como ela é: sem coerência, sem roteiro moral prévio, submetida ao acaso desarticulador de toda esperança vã. Rachel Welch é uma recém-viúva milionária. É pega como refém pelo bando de Dean Martin, condenado à forca, mas que é salvo pelo irmão James Stewart.
Este é um homem generoso que busca salvar seu irmão não só da forca, mas do desencanto com a vida que o levou ao crime. George Kennedy, xerife da cidade e apaixonado por Rachel Welch, é um homem honesto e virtuoso que irá corajosamente à caça do bando.
Dean Martin encontra na inesperada paixão entre ele e Rachel Welch o motor suficiente pra fazê-lo escutar o conselho de seu irmão: "Deixe a vida criminosa e vá fazer uma família".
O xerife, quando consegue prender o bando, pede a mão da bela mulher, mas ela recusa, ainda que ele seja honesto e devoto a ela. Ela prefere o criminoso. Este, em claro processo de redenção, acaba morto (junto com seu irmão), destruindo toda a esperança.
Qual é a moral dessa história? Nenhuma. Ou, arrisquemos uma: a vida é cega.

Folha de S. Paulo (05 de julho de 2010)


quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Toy Story" - Contardo Calligaris


Assisti a "Toy Story 3" na quinta passada. Era noite, e, na sala, só havia adultos, que saíram todos comovidos, sorrindo e fungando. Talvez nosso envelhecimento se pareça um pouco com o destino dos brinquedos abandonados pelas crianças que se tornam grandes.
Por exemplo, quando os filhos não brincam mais conosco, antes de tomar o caminho do sótão-asilo ou o do lixão-cemitério, sonhamos com a possibilidade de sermos, durante um tempo, brinquedos para nossos netos. Bem como os protagonistas de "Toy Story 3".
O filme me deixou também com saudade da fantasia livre e maluca que organizava meus jogos de criança. Inevitavelmente, acabei pensando nas gerações de brinquedos que me acompanharam na infância.
Quando meus pais morreram, eu morava longe, e meu irmão se ocupou de esvaziar o apartamento de nossa infância.
Foi assim que ele adentrou sozinho pelos dois imensos closets da sala, que nós chamávamos de "cavernas de Ali Babá" e que continham, entre inúmeras outras coisas, nossos brinquedos aposentados.
Meu irmão decidiu transferir esses sobreviventes para sua casa e, ao pedir meu consentimento, mencionou os mais valiosos, o trem elétrico, os soldadinhos de Fort Apache. Quanto aos outros, eu imaginava que ele os doaria ou descartaria.
Nada disso. Nestes dias, passando duas semanas na Itália, com "Toy Story" na lembrança, explorei, pela primeira vez, um armário de três portas que está no corredor do apartamento veneziano que divido com meu irmão.
Encontrei nossos velhos jogos de sociedade, quebra-cabeças, um "Pequeno Químico", um porta-aviões sem aviões, caminhões, robôs etc. Enfim, atrás desse amontoado, esbarrei num helicóptero, bem guardado em sua caixa original, com um ar de novo. Desse brinquedo me lembrei perfeitamente.
No dia de Natal, meu irmão e eu acordávamos pelas quatro da manhã, ansiosos para conhecer, enfim, nossos presentes, todos embrulhados embaixo da árvore. Abríamos os pacotes e brincávamos sozinhos, antes de meus pais acordarem.
Vencidos pelo cansaço, voltávamos para cama levando os brinquedos dos quais mais tínhamos gostado e que dormiriam conosco mais uma hora ou duas.
No Natal dos meus sete ou oito anos, eu ganhei um helicóptero. Não era teleguiado (era o começo dos anos 50), mas voava. Sim senhor, voava mesmo. Ele era ligado por um cabo a um comando mecânico (não elétrico): ao girar (freneticamente) uma manivela, o movimento era multiplicado e transmitido até às pás do rotor, de forma que, efetivamente, o helicóptero se levantava até o braço da gente cansar.
Amei o helicóptero. Amei a sensação de que ele voava não por alguma mágica, mas pelo meu esforço. Brinquei com ele mais ou menos uma hora, até que, inexplicavelmente, ele quebrou; eu acionava a manivela, ouvia um ruído de engrenagens infelizes, e as pás permaneciam paradas.
Não tenho como reconstruir exatamente a cadeia de meus pensamentos; só sei que o que prevaleceu não foi a pena pela perda do brinquedo novo, mas uma espécie de sentimento protetor. Explico.
Eu não sentia culpa (tinha brincado do jeito que era mesmo para brincar com o helicóptero), mas não aguentava a ideia de que meus pais tivessem notícia da morte precoce de seu presente, que, certamente, eles tinham escolhido com carinho e pago com esforço. Em suma, eu precisava proteger os meus pais.
Não disse nada; coloquei o helicóptero de volta na caixa e o levei para a cama comigo. Quando acordei, não sei como, consegui convencer a todos de que aquele era meu presente preferido, por isso eu não queria que outros brincassem com ele, nem meu irmão e ainda menos os sobrinhos convidados para o almoço de Natal.
Milagrosamente, mantive essa ficção durante os dias seguintes: adorava o helicóptero, e ninguém podia tocar nele.
De fato, ninguém nunca mais brincou com ele. Eu tampouco, é claro; brincar com ele quebrado teria sido revelar minha mentira.
E agora o helicóptero está aqui, na sua caixa de origem -símbolo de minha vontade sofrida e um pouco louca de fazer e proteger a felicidade de meus pais.
Tem cara de novo, mas é um pouco tarde para invocar a garantia.

Folha de S. Paulo (1º de julho de 2010)

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