domingo, 22 de agosto de 2010

Abel - Luiz Felipe Pondé


CARO LEITOR, sou um pobre de espírito. Não daquele tipo que herdará o reino dos céus, como afirma Jesus no "Sermão da Montanha". Não há lugar pra gente como eu no reino dos céus. Por uma razão simples: não amo ninguém mais do que a mim mesmo. E isso é mortal. Sempre foi. Os mentirosos é que tentam dizer o contrário. Não partilho da nova "ciência do egoísmo", essa que se traduz em livros e revistas que buscam "novas formas de espiritualidade" centrada no amor próprio. Ou nessa coisa horrorosa chamada "autoestima".
Tampouco fiz de mim um budista light, desse tipo que parasita as religiões orientais com a intenção de inventar uma espiritualidade que sirva ao clássico egoísmo moderno, numa salada mista de energias hindus com Jung barato. Antes de tudo, recuso o budismo light por um mero senso do ridículo que habita essas formas mesquinhas de espiritualidade.
Com isso quero dizer que não trocaria o reino dos céus por alguma forma quântica de paraíso egoísta, ao sabor da espiritualidade de livrarias de aeroporto do tipo "O Efeito Sombra", cujo subtítulo é "Encontre o Poder Escondido na sua Verdade", dos "guias espirituais" Deepak Chopra, Debbie Ford e Marianne Williamson, perfeito para almas superficiais amantes de toda forma de espiritualidade mesquinha.
O que é uma espiritualidade mesquinha? Fácil responder essa. Espiritualidade mesquinha é, antes de tudo, uma forma de crença que deforma a face do crente, iluminando seus caninos ocultos. Aquela que sempre medita com o objetivo de nos tornar mais poderosos e bem-sucedidos. Essa praga espiritual está em toda parte porque, simplesmente, não conseguimos entender que, para salvarmos nossa vida, temos que perdê-la. Jesus tinha razão.
O principal obstáculo para se libertar do mal é o "eu". Essa peste que contamina todo ato humano. Como vampiros de Deus, queremos fazer até da "sombra" (do mal em nós) um serviçal de nosso sucesso.
Sou um pobre de espírito. Passo horas temendo o abandono, o desprezo e a indiferença. Comparando meus pequenos sucessos com os mais infelizes do que eu. Ainda bem que eles existem. Rezo para que o mundo me ame. Em meus pesadelos sempre sou o último dos amados do mundo. Quando encontro alguém melhor do que eu, perco o sono, quero destruí-lo. Sua respiração me sufoca. Sua generosidade me humilha. Seu sorriso é uma prova de que fracassei em amar o mundo.
Que o leitor apressado não pense que estou numa crise de autoestima. Que o leitor crente nessas formas de espiritualidade mesquinha não aplique psicologia barata ao que digo, tentando justificar tudo que lê com alguma hipótese acerca do cotidiano de quem escreve. Você não me conhece. Mas seguramente conhece a miséria que vos falo: quem ama alguém mais do que a si mesmo?
Não vale jogar na cara dos outros amores maternos e paternos ou filiais. Na era do "direito à felicidade do indivíduo", até a ciência já está provando (vide o diagnóstico apresentado pelo caderno Equilíbrio desta Folha no último dia 3/8) que ter filhos é um mau negócio.
Pais e mães são mais estressados do que adultos sem filhos. E é a mesma ciência que agora "descobre" a miséria dos pais, que a cria, em grande parte, com suas demandas "cientificas" de aperfeiçoamento da função parental. Ninguém mais sabe ser pai e mãe sem a palavra de uma especialista. Como sempre digo, a mania de criar um "homem" melhor vai nos destruir a todos.
Como idiota digital que sou, busco rapidamente na internet alguma nova teoria científica ou política que prove que ninguém é melhor do que ninguém. Que nos reúna num ato de mediocridade comum. Alguma nova técnica de treinamento em recursos humanos que devolva a mim minha falsa glória. Meu objetivo é fazer inveja a Deus.
Entendo Caim em seu ódio por Abel. Ao contrário das bobagens que afirma Saramago em seu livro "Caim" -críticas típicas de quem nada entende acerca da tradição bíblica porque permaneceu infantil espiritualmente-, Caim não suportou o fato de que Abel era melhor do que ele e por isso o matou. Existe algum Abel aí ao seu lado?

Folha de S. Paulo (16 de agosto de 2010)

"A origem" - Contardo Calligaris


SABIA PELA imprensa que, no novo filme de Christopher Nolan, "A Origem", os heróis (ou vilões, que sejam) invadem o mundo onírico de alguém, transformam, ou mesmo fabricam seu sonho e, com isso, manipulam o próprio sonhador.
Confesso que fui ao cinema com um certo preconceito. A pintura (Salvador Dalí, De Chirico), a literatura (Breton) e o cinema (de Fritz Lang a Hitchcock) inventaram uma estética do sonho que é sedutora, mas não tem muito a ver com nossa experiência de sonhadores.
Com isso, eu antevia um filme pouco plausível, laborioso e afastado do meu cotidiano. Surpresa total: o mundo do filme de Nolan me pareceu familiar e absolutamente realista. Só que não foi pela representação do mundo dos sonhos. Ao contrário, "A Origem", para mim, é fiel à realidade na qual vivemos quando NÃO estamos sonhando.
Salvo exceções, exatamente como os personagens de Nolan quando sonham, vagamos pelo mundo aparentemente acordados, mas suficientemente sedados para que possamos esbarrar apenas em nossas próprias projeções: fantasmas do passado, alucinações do desejo e defesas -espécie de seguranças armados que deveriam nos proteger (vai saber de quê) e acabam se virando sempre contra nós mesmos.
Assisti ao filme no cinema Leblon, no Rio de Janeiro, no sábado à tarde. Depois da sessão, voltei a pé até o Arpoador.
Ao longo da Vieira Souto, caminhei na fantasmagoria de um Carnaval do passado, que começara, justamente, com uma saída da Banda de Ipanema e em que tudo dera errado. Os fantasmas riam de mim: se eu os tivesse enxergado à época, teria previsto um fracasso amoroso que, dez anos depois, foi doloroso sobretudo por ser tardio.
No Arpoador, apesar do frio, havia um menino brincando nas ondas; achei que ele corresse perigo, levado pela ressaca. Um jovem avançou no mar para trazê-lo de volta para a praia.
Nos anos 80, três vezes por ano, eu ia de Porto Alegre ao Rio para acompanhar meu filho até o avião que o levaria de volta para a França, onde ele morava com a mãe. Era o fim de suas férias e o momento em que a gente ia se separar, de novo. Chegávamos ao Galeão ao meio-dia e corríamos de táxi até Ipanema para mergulharmos no mar antes de ele embarcar. Pois é, no sábado passado, cruzei o olhar do menino que voltava das ondas: era um olhar de crítica e decepção por eu deixá-lo viajar para longe de mim ou por eu ter viajado para longe dele -era o olhar de meu filho.
Do Leblon ao Arpoador, passei por vários níveis do videogame de minha vida e, embora houvesse gente nas ruas, no fundo, não encontrei ninguém de verdade, só assombrações.
Há mais uma razão pela qual o mundo de "A Origem" me pareceu curiosamente familiar. Disse que, no filme, os heróis acompanham alguém num passeio pelo seu mundo psíquico e, nessa andança, eles extraem e inserem pensamentos. É muito diferente do trabalho de um psicoterapeuta ou psicanalista?
Sem revelar nada que atrapalhe o prazer dos futuros espectadores:
1) Para sair um pouco da assombração, é bom matar alguns fantasmas (o de um antigo amor que nos pede, por exemplo, para morrer com ele, ou o de um pai cujas últimas palavras continuam vivas como uma maldição). Suicidar nosso narcisismo também nos ajuda a voltar para a realidade. Mas é bom não confundir o suicídio de nosso narcisismo com o suicídio de nossa pessoa.
2) No fim do filme, a vítima de nossos heróis descobre algo que muda seu futuro de maneira positiva -qualquer terapeuta concordaria. Essa "verdade" foi plantada por nossos heróis, os quais também arquitetaram o lugar escondido e proibido onde a vítima encontra seu "segredo" (o que faz, obviamente, que ela aceite e preze essa "descoberta", que é, de fato, um engodo).
Qualquer psicanalista ou psicoterapeuta dirá que, numa cura, ele pode extrair pensamentos nocivos e desnecessários, mas ele nunca inseriria nada; isso seria sugestão, coisa de padre e pastor.
Concordo, mas, saindo do cinema, pensei: e se, como os heróis de Nolan, a gente estivesse praticando a arte insidiosa (e, às vezes, benéfica) de plantar no paciente nossas ideias transvestidas de segredos? Foucault adoraria essa dúvida.
Só me resta desejar a todos um bom filme.

Folha de S. Paulo (12 de agosto de 2010)

Duas evas - Luiz Felipe Pondé


CARO LEITOR, quando você tem dúvidas de como fazer uma mulher feliz (desculpe-me a presunção de querer saber o que seja uma mulher feliz), como você faz?
Conversa com amigos? O irmão mais velho? Usa o velho método de tentativa e erro (claro, sempre errando ao final, porque afinal trata-se da mulher e seu desejo insaciável)? Sinto lhe dizer, essas soluções já eram. Existem métodos mais modernos. Um amigo me disse que hoje há uma tendência absolutamente inovadora no mercado dos afetos.
Qual é? Você não sabe? É duro ser ultrapassado, hein? Saiba que existem formas supermodernas para lidar com esta patologia (já descrita pela neurociência) como "lazy brain". Esta patologia consiste em cérebros que recusam novas sinapses e que se alojam em caixas cranianas (igualzinha à sua), que, por sua vez, são ligadas a ossinhos que, juntos, perfazem o que você singelamente chama de "meu pescoço".
O tratamento consiste basicamente em fazer primeiro uns 15 minutos de ioga, depois, mais 15 minutos de meditação transcendental e, por último, um curso de 15 minutos de clown mais todo tipo de inovação que a neurociência lançar naquele dia específico em que você se sentir ultrapassado.
E a nossa inovação de hoje? Quando você, leitor ultrapassado, tiver dúvidas de como lidar com uma mulher, contrate uma consultora lésbica. Esta consultoria deve ter sido inventada em um desses países superavançados onde todo mundo é livre, feliz, recicla lixo e anda de bike. Esses lugares onde existem milhares de pessoas com "consciência". Não confie seus segredos a pessoas com "consciência".
Segundo a nova tendência, a lésbica é, na realidade, quem melhor entende de mulher. Bem, ela é mulher. A lógica é bem lógica, afinal. Quem melhor sabe onde um corpo de mulher sente prazer do que alguém que tem um corpo de mulher? Quem melhor "sabe o que uma mulher quer na vida" (expressão tão metafísica quanto "salto quântico") do que alguém que "quer a mesma coisa na vida que a mulher, porque é mulher"? Será que a lésbica e a hétero querem a mesma coisa?
Calma. Beba um gole de água. Álcool não, porque ainda é cedo. Se não morrer de medo de câncer, fume um. Pense o seguinte. O mercado de "filme adulto" sempre colocou relações sexuais entre mulheres em filmes para heterossexuais, certo? E por quê? Porque o sonho de todo cara é sair com duas gatas e vê-las em ação. E qual a razão disso? Ninguém sabe.
Mistérios metafísicos... Deus existe? Minha mãe me ama? Serei feliz sendo honesto? Todo cara quer duas gatas... Who knows why? Deus está trabalhando neste exato momento, com sua equipe, tentando entender porque Adão exigiu duas Evas pra ele.
Sei que a esta altura a turma das chatas, que só gosta de eunucos, está gritando: "Isso é a prova de que o mundo é patriarcal e que o corpo da mulher é visto como objeto de consumo". Mas hoje estou sem saco de conversar com elas, que fiquem gritando. Hoje estou mais preocupado com as inovações no mercado dos afetos e com o que as lésbicas têm a nos ensinar.
Finalmente os héteros perceberam que os homos são o futuro? Os caras "entenderam" que lésbicas sabem dar mais prazer, carinho e compreensão às mulheres do que eles? Seria a vez das mulheres contratarem gays para explicar o que homens gostam na cama e na vida? No lo creo.
Ou isso tudo nada mais é do que o velho impulso cafajeste que existe em todo homem e que levou Woody Allen a colocar Scarlett Johansson beijando Penélope Cruz em "Vicky Cristina Barcelona"? Aliás, viu Deus? Aprenda com o ateu Woody Allen. Era isso que Adão tinha em mente, seu tolinho.
E você, cara Eva, você concorda que lésbicas "sabem melhor" o que você quer? Seu amigo gay lhe dá uma ideia melhor do que um homem de fato quer?
Ou será que, para além do sonho da Scarlett e da Penélope em ação, o homem está mesmo é perdido nessa era boring do "acesso" e da ciência na qual somos todos obrigados a "saber tudo" o tempo todo agora e "respeitarmos o espaço do outro"? E por isso, ele já não sabe o que fazer para saber o impossível: o que a mulher, afinal, quer?

Folha de S. Paulo (09 de agosto de 2010)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Castigos físicos - Contardo Calligaris


UMA RECENTE pesquisa Datafolha (Folha, 26/7) mostra que, no Brasil, 69% das mães e 44% dos pais admitem ter batido nos filhos.
Parêntese. Os pais são tão violentos quanto as mães: simplesmente, eles passam menos tempo em casa e lidam menos com o "adestramento" dos filhos.
A pesquisa constata também que 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças. Como se explica, então, o fato de que 54% dos brasileiros se declaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos físicos em crianças? Há várias hipóteses possíveis.
1) Talvez quem apanhou quando criança não queira perder o direito de se vingar em cima dos filhos.
2) Talvez não aceitemos a ideia de que os nossos pais tinham sobre nós uma autoridade maior do que a que nós temos ou teremos sobre nossos filhos.
3) Na mesma linha, talvez estejamos dispostos a apanhar dos superiores sob a condição de sermos autorizados a bater nos subalternos.
Nota: aceitar apanhar dos mais poderosos para poder bater nos mais fracos é a caraterística que resume a personalidade burocrático-autoritária do funcionário fascista.
4) A autoridade, dizem alguns com razão, sempre tem um pé na coação e recorre à força quando seu prestígio não for suficiente para ela se impor. Hoje, a autoridade simbólica dos adultos é cada vez menor. É provável que os próprios adultos sejam responsáveis por isso (principalmente, por eles se comportarem cada vez mais como crianças); tanto faz, o que importa é que o prestígio dos adultos não lhes garante mais respeito e obediência. Portanto, a palavra aos tabefes.
É um erro: o castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é apenas a força. A reação mais sensata da criança será: tente de novo quando eu estiver com 15 anos e 1,80 m de altura.
Esses e outros argumentos a favor da palmatória não encontram minha simpatia. Até porque verifico que os rastos desses castigos não são bonitos. Mesmo um simples tapa é facilmente traumático tanto para o pai que bateu como para o filho: ele paira na memória de ambos como uma traição amorosa que não pode ser falada por ser demasiado humilhante (para os dois). Há pais violentos que passam a vida na culpa, e há crianças cuja vida erótica adulta será organizada pela tentativa de encontrar algum sinal de amor no sadismo dos pais.
Apesar disso, se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente eu teria me declarado contra a nova lei, por duas razões.
A primeira (e menos relevante) é que existem violências contra crianças piores do que a violência física, e receio que uma lei reprimindo o castigo físico nos leve a pensar que, por assim dizer, "o que não bate engorda". Infelizmente, não é preciso bater para trucidar uma criança.
A segunda razão (e mais relevante) é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder absoluto sobre o corpo dos filhos. Mesmo sem a nova lei, o professor que visse sinais de violência no corpo de um dos alunos avisaria à polícia e à autoridade judiciária. O mesmo valeria para o pediatra ou para o psicoterapeuta. Inversamente, um pai cujo filho fosse batido na escola processaria o professor e a instituição. Também, com um pouco de sorte, uma criança batida pode denunciar o adulto que a abusa.
Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral?
Essas leis me parecem ter sobretudo a intenção de afirmar, demonstrar e estender o poder do Estado na vida dos cidadãos.
Uma coisa aprendi com Michel Foucault: o poder moderno é raramente extravagante em suas exigências. Como ele não tem conteúdo específico, mas gosta apenas de se expandir, ele escolhe o caminho mais fácil, conquistando a adesão "espontânea" de seus sujeitos. Como? Simples: operando "obviamente" "pelo bem dos cidadãos" -no caso, pelo bem das crianças.
Resumindo:
1) sou absolutamente contra qualquer castigo físico; 2) sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais.

Folha de S. Paulo (05 de agosto de 2010)

A gula republicana - Luiz Felipe Pondé


ELA PROVAVELMENTE estudou serviço social ou direito. Ele, psicologia ou pedagogia ou mesmo ciências sociais. Ambos têm certeza de que devem "melhorar o mundo" através da criação de leis ou políticas públicas. Querem criar o cidadão ideal. O que é isso? Sei lá, alguém que vá ao banheiro com consciência social?
Conhece alguém assim? Eles estão em toda parte, como uma praga querendo domar a vida a qualquer custo. E vão mandar em você logo.
Não se trata de uma questão apenas para alguém que tem simpatias por formas de vida menos controlada, como eu. Alguém que fuma charutos cubanos e acha que terapia de shopping faz bem mesmo (quem diz o contrário é mentiroso ou não tem dinheiro). Eu sei que o efeito dessas terapias passa rápido, mas, afinal, o que passa rápido mesmo é a vida.
O controle legal da vida, grosso modo, separa dois modos de ver a política desde o século 18. Um primeiro modo, "mais" britânico, tende a ser mais cauteloso em relação às formas políticas e legais de controle da vida moral (hábitos e costumes). Outro, mais descendente da revolução francesa, tende a babar de tesão só em pensar no controle dos hábitos e dos costumes, devastando a diversidade moral do mundo, como na proibição do véu islâmico na França.
No Brasil, temos um déficit sério em nossa formação. Quase todo mundo só conhece os franceses utópicos ou os alemães hegelianos (todos jacobinos de espírito), o que empobrece o debate público. Essa pobreza não se limita ao senso comum, mas, desgraçadamente, atinge a própria academia que repete cegamente a liturgia da gula republicana: controlemos a vida em nome de uma vida perfeita.
Mas o que é a gula republicana? A democracia republicana tende a devorar o espaço moral. Ela o faz porque vê o espaço moral como matéria da "coisa pública" e, por isso, assume os hábitos e costumes das pessoas como devendo ser, por natureza, objeto sob seu controle. É marca da democracia republicana o "poder minutal" (dizia Tocqueville, francês que pensava como britânico): sua natureza é buscar controlar os detalhes da vida.
Quais detalhes? Legislar afetos, hábitos, sentidos, sexo, relações parentais íntimas, comida, escolas, memória, nada escapa da gula republicana e seu clero. Leis que querem fazer de pais e filhos delatores uns dos outros, de amantes representantes do "sindicato dos gêneros". Erra quem ainda associa o fenômeno totalitário às formas clássicas do fascismo do século 20, o novo totalitarismo está associado à inflação da ideia de "bem público".
Se você der uma palmadinha no filho, o Estado te pega! Quem vai denunciar? Que tal ensinar às crianças nas escolas alguns métodos de denúncia? A família já vai mal mesmo.
Onde estaria a fronteira desta inflação da noção de "bem público"? Vamos ver... ah, já sei: não existe fronteira! Quer ver? Imagine só: está proibido rezar antes de jantar em nome da liberdade religiosa das crianças, está proibido contar historinhas paras as crianças sem antes uma análise prévia por especialistas da questão da violência de gênero, pais que não tiverem o certificado de "alimentação zero gordura e zero açúcar" pagarão multa.
Dirá o leitor ingênuo: mas a opinião pública é contra a lei das palmadinhas. Sinto muito: a opinião pública é uma "vadia". Hoje ela diz "não", amanhã ela dirá "sim", tudo depende do que for repetido cem vezes. A democracia sofre com esse mal: sua natureza tende fatalmente para a mentira, para a retórica, para a superficialidade.
Para preservar a democracia de seu viés tirânico (a gula republicana), temos que "defender" a família e suas mazelas em seu espaço (in)feliz, deixar que o manto sombrio da incerteza cubra parte de nosso cotidiano porque, o que preserva a liberdade, não é o consenso acerca do que sejam os "bens morais", mas a sombra que os cerca.
Para preservarmos esta "sombra", é necessário opções à tendência hegemônica no Brasil hoje, que é autoritária. Veja as "opções presidenciáveis". Todos são do clero jacobino de alguma forma. Todos veem a política como "curadora" das almas. Socorro!

Folha de S. Paulo (02 de agosto de 2010)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Do ponto de vista da pedra - Luiz Felipe Pondé


NUMA MADRUGADA, afundo em cigarros e insônia. Na TV a cabo, cenas de um filme chinês, "2046 - Os Segredos do Amor", fotografia de cores fortes, músicas incomuns, mulheres lindas, ancas deliciosas que sobem e descem escadas e se arrastam entre os lençóis. O filme não deixa de ser uma ode a esse antigo vício que muitos de nós, homens, temos: a paixão pelas mulheres e a mistura de afetos que as atormenta, a beleza insustentável, a forma infiel do corpo, o tédio incurável.
Uma chinesa se apaixona por um japonês. Seu pai a proíbe de amar o japonês, afinal o ódio aos horrores da guerra causados pelos japoneses justifica sua fala. O ano é 1967.
Ele volta para o Japão. Ela enlouquece, adoece, é internada. Põe-se a falar sozinha, definha sob a opressão da saudade. Vaga pelo quarto abraçando sombras.
E, aí, o filme me ganha definitivamente. Sim, eu sei que pessoas saudáveis não sofrem assim. Mas, em minha obsessão pelos que morrem de amor, não consigo admirar quem resolve bem a vida. Tenho certa paixão por quem fracassa no combate ao afeto. Certamente, tenho algum trauma primitivo, daqueles que fundam nossa personalidade despertando nossa alma.
Tem gente por aí que se julga inteligente porque não acredita na existência da alma -pobres diabos. Eu sei que podem me achar excessivamente cético, mas eu só acredito em Deus e na alma. Em mais nada. Eu, aliás, confio mais em almas penadas. Que assustam os sonhos à noite. Sim, eu sei. Melhor aqueles que tomam remédios, fazem terapias objetivas, meditam 15 minutos diariamente e viram budistas. Mas eu me encanto facilmente por gente que, como essa heroína chinesa, adoece de amor.
Vagando pela casa tentando relembrar cada palavra dita, cada cheiro, cada silêncio, cada gosto na boca, o toque da língua, a saliva, escorrendo a mão pelos seios, numa dança doce e macabra de acasalamento. Sozinha, beijando as paredes. O rosto coberto de lágrimas, os olhos vidrados, a boca salgada, a voz rouca de tanto gritar sozinha para os céus.
A incompreensão de todos à sua volta por tamanha incapacidade de se tornar indiferente ao amor morto. Sentir-se como uma folha esmagada contra o chão, elevada pelo vento, seca de tanto afeto, evocando a misericórdia dos deuses, eis minha fenomenologia do amor.
Lembro-me do conto de Edgar Allan Poe "A Queda da Casa de Usher". Não me esqueço da doença que afeta o irmão e a irmã Usher. O talento monstruoso do melancólico Poe esmaga o leitor de sensibilidade diante da morbidez do amor impuro entre os irmãos Usher, fundando uma cumplicidade de segredos na distância entre os séculos.
A degeneração mortal dos irmãos se materializa numa sensibilidade insuportável para com os detalhes concretos da existência física. As roupas pesam na pele, os sons das palavras faladas em voz baixa rasgam os ouvidos, o paladar da língua é ferido pelo gosto sem gosto do alimento, a claridade de um dia sombrio ofusca a pupila infeliz diante do peso da luz, o ruído das relações humanas tortura o lento passar das horas, até as pedras das paredes da casa de Usher são agonia.
Miseráveis irmãos buscam a nudez, o silêncio, a fome, a escuridão, a solidão como cura. A vida, pouco a pouco, se torna morte, buscando o impossível repouso na ânsia de se fazer também pedra.
Amar é estar impregnado de uma presença, como o acúmulo dos anos se torna limo entre as pedras. Como uma forma de infecção invisível que une corpo e alma no desejo.
Sim, eu sei que se trata de um modo ruim de viver. Devemos fazer o culto da vida saudável. Mas não consigo. Encanta-me a personagem que perde a batalha contra si mesma como minha chinesa insone.
Morbidez? Pouco importa. Fôssemos apenas um bando de mamíferos alegres, ao longo de nossos milhares de anos de existência, não sobreviveríamos. A dor é que nos adapta ao ambiente hostil.
O "direito à felicidade" é a nossa grande falácia: hoje somos superficiais até do ponto de vista das pedras. Já Tocqueville, no século 19, temia que a "mania da felicidade" tornasse todos nós os tolos do futuro. Amém.

Folha de S. Paulo (26 de julho de 2010)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Divórcios contagiosos - Contardo Calligaris


MUITOS RECÉM-SEPARADOS se queixam (com razão) de que sua relação com os amigos de antes não é mais a mesma. Não é tanto porque, diante de uma separação ou de um divórcio, os amigos se dividiriam em dois times opostos. Isso é raro.
Mais frequentemente, os casais que eram próximos do casal que se separou tendem a evitar qualquer um dos recém-separados.
Às vezes, os desquitados entendem seu afastamento como uma condenação moral por eles terem se separado. Isso lhes resulta intolerável, vindo de amigos que, em muitos casos, foram confidentes ao longo do drama da separação.
Outras vezes, os desquitados entendem que os casais de amigos, ao se afastarem deles, protegem-se contra alguma tentação erótica. É o cúmulo, eles dizem: se a simples aparição de um desquitado ou de uma desquitada é suficiente para ameaçar o casamento, talvez devessem fazer como a gente, separar-se.
Uma pesquisa recente, de R. McDermott, J. Fowler e N. Christakis (http://migre.me/Y90v), mostra que os casais talvez tenham alguma razão quando decidem fugir dos amigos desquitados, pois separações e divórcios não são apenas dramas privados (que afetam o casal e seus rebentos), mas são também fenômenos coletivos porque, curiosamente, eles são contagiosos.
Os autores da pesquisa usaram o banco de dados de um estudo (originalmente sobre o risco de doença cardíaca) que acompanha a população de Framingham, EUA, desde 1948. Para a segunda geração de pesquisados (5.124 indivíduos), entre outras informações, continuam sendo anotadas, a cada dois anos, as diferentes listas dos que cada um identifica como seus amigos, parentes, vizinhos e colegas. Obviamente, muitos dos que são indicados nas listas fazem, eles mesmos, parte da amostra da pesquisa.
Recortando os dados, os autores constataram que as chances de um indivíduo se divorciar aumentam em 75% quando ele se relaciona diretamente com alguém que está se divorciando ou acaba de se divorciar. Quando o desquitado está a dois graus de separação (ou seja, é o amigo de um amigo), o efeito é menor, mas permanece: as chances de nosso indivíduo se divorciar aumentam em 33%.
Será que a causa disso seria a ruína que a sedução erótica exercida pelos desquitados levaria ao casamento dos outros? Ou será que os próximos que se divorciam nos parecem mais alegres e nos tentam com a imagem de sua nova vida? Uma leitura atenta da pesquisa permite afinar a explicação.
De fato, o aumento de 75%, que mencionei antes, é a média dos efeitos diferentes produzidos pelo divórcio de amigos, parentes, colegas e vizinhos. Quando o "amigo" de alguém se divorcia, a probabilidade de esse alguém também se divorciar dentro de dois anos aumenta em 147%. E, no caso do divórcio de parentes, colegas e vizinhos, quase nada acontece. Em outras palavras, o "contágio" do divórcio funciona mesmo entre amigos e, fato significativo, numa direção apenas: o divórcio se transmite de quem é identificado como amigo para quem assim o identifica. Explico.
As relações de amizade registradas pela pesquisa são, em grande parte, não recíprocas: os que fulano indica como seus amigos não indicam fulano como amigo deles. Entende-se que muitos identificam como "amigos" não seus reais companheiros de cada dia, mas indivíduos que eles admiram, que eles gostariam que fossem seus amigos.
Esse tipo de "amigo", idealizado (e duvidoso), é sempre o porta-estandarte de nossos devaneios. Se ele se divorciar, será, automaticamente, para nós, o exemplo (tentador) da felicidade livre e solteira à qual receamos ter renunciado.
Pouco importa que, eventualmente, o tal amigo lamente amargamente a solidão; preferiremos pensar que ele está vivendo um de nossos sonhos frustrados. Invejá-lo é a revanche contra o que não dá certo (e sempre há algo que não dá certo) em nosso casamento. Invejá-lo e, quem sabe, querer imitá-lo.
Moral da história. Para preservar seu casamento, não é preciso afastar seus amigos recém-separados. Basta (e é mais saudável) parar de identificar como amigos indivíduos que não incluiriam você na mesma categoria.

Folha de S. Paulo (22 de julho de 2010)

Beleza espanhola - Luiz Felipe Pondé


A Copa do Mundo acabou. Mas fiquei feliz com esta por uma razão especial: o bem venceu, o futebol da Espanha. E não o horroroso futebol de "resultados".
É claro que torço pelo Brasil. Não sofro dessa afetação de se "europeizar" na Copa, reeditando o velho preconceito de vira-lata do qual nós brasileiros sofremos.
Sempre que o Brasil é eliminado, me movo por parentesco cultural. Sim, tenho "sangue francês", o que sempre dá a França um lugar em meu coração de cangaceiro.
Aliás, concordo com a grande sacada de humor do colega Juca Kfouri: acho que naquele intervalo do primeiro para o segundo tempo do jogo com a Holanda, nosso treinador mandou o time parar de jogar bem e voltar ao futebol covarde e horroroso.
Depois da nossa amarelada diante da laranja, passei a torcer por meus "irmãos culturais". Torci pela Argentina do passional Maradona contra a Alemanha e sofri de verdade com os 4 X 0 que ela tomou. Torci pelo corajoso Uruguai contra Gana, contra a Holanda e contra a Alemanha.
Eliminados los hermanos, fiz da Espanha meu time. Por duas razões.
Sempre que viajo por aí, quando chego a Portugal ou a Espanha, começo a me sentir em casa. A língua, o barulho, a bagunça, a comida, as maravilhosas mulheres espanholas, enfim, a paixão dos ibéricos me lembra o Brasil, minha casa.
Gosto dos nossos ancestrais. Sim, sim, sei que ingleses são mais "chiques"" para quem se sente vira-lata.
Mas não para mim. Talvez esteja ficando velho, mas cada vez mais gosto do que é "meu". E o que é mais importante na vida, muitas vezes o é justamente porque não escolhemos.
Torci apaixonadamente pela Espanha contra a Alemanha e contra a Holanda.
Se uma das razões de ter feito da Espanha meu time entre europeus foi o parentesco cultural que sinto por ela, a outra razão foi mais filosófica. Como disse na abertura desta coluna, na Copa da África do Sul, venceu o bem contra o mal, e o bem era a arte da Espanha.
Seu futebol corajoso, ofensivo, generoso, bailado (ainda que com poucos gols) bateu a lógica científica das últimas Copas do Mundo.
Eu que acompanho Copas do Mundo desde 1966, vi (como todo mundo) a Copa virar um desfile da covardia matemática dos "idiotas da objetividade", como dizia o grande Nelson Rodrigues, e como citou recentemente o craque camisa nove da seleção tricampeã de 1970, e colunista desta Folha, Tostão, o filósofo discreto.
O mal no futebol, além das mazelas capitalistas que o afetam (mas que tem um lado bom que é reconhecer o esforço profissional dessa moçada que a ele se dedica), é esse joguinho sem vergonha de ficar o tempo todo na retranca, com medo de perder, mergulhado nesta ética da covardia estatística que toma conta do mundo dia a dia.
O mesmo tipo de covardia de que eu falava na semana passada nesta coluna (12/07) e que deixa a vida chata, deixou o futebol chato.
Enganam-se aqueles que acham esse assunto "menor": a busca da saúde total é um mal sim político, pois é parente da pureza tirânica fascista e não mera modinha.
Como o futebol chato que busca apenas "resultados", a saúde total busca uma vida pautada pelos "resultados fisiológicos" e não pelos prazeres do mundo.
Esta Folha acertou em cheio ao dizer que "o futebol agradece" com a vitória espanhola nesta Copa. Isso deve ser repetido à exaustão na mídia, nas escolas, na publicidade, na novela das oito, porque a beleza na vida nunca é irmã gêmea do medo, mas sim irmã gêmea da coragem. E o medo deixa tudo feio.
E aqui, como todo mundo sabe, o esporte traz à luz seu profundo caráter de mimetizar, como que num pequeno laboratório, grande parte da vida.
O que vale na vida não é o resultado (ainda que seja necessário ter coragem para viver assim, porque a vida foi, é e sempre será uma guerra de morte), mas a beleza que a ela somos capazes de dar, como já dizia Platão no seu diálogo "O Banquete": o destino de Eros (amor) é engendrar a beleza no mundo.
O time espanhol mostrou, de forma elegante, que a beleza ainda vale a pena e que os covardes e feios podem não ser o herdeiros da Terra.

Folha de S. Paulo (19 de julho de 2010)

Dois jeitos de viajar - Contardo Calligaris


NO FIM da adolescência, eu não queria mais viajar com meu pai, pois gostávamos de viajar de jeitos diferentes. Eu entendia essa diferença pensando nos estilos opostos de George Byron e John Ruskin, dois grandes amantes de Veneza.
Byron dedicou a Veneza o quarto canto de "Childe Harold's Pilgrimage" (a peregrinação do cadete Harold), cujos primeiros versos, "Parei em Veneza, sobre a Ponte dos Suspiros etc.", ainda são declamados por hordas de jovens românticos, quando olham para a dita ponte.
O curioso é que, em "Childe Harold", Veneza é apresentada como uma ruína solene e grandiosa. De fato, Byron não tinha interesse algum pela arquitetura e pelas artes. Ele gostava de acumular experiências e tolerava os monumentos apenas se eles fossem animados por uma boa história.
Byron ficou em Veneza de 1816 a 1819, primeiro nas Frezzerie, no apartamento de um alfaiate de cuja mulher ele era o amante, logo, a partir de 1818, num palácio, onde acumulou bichos exóticos, carnavais e gonorreias. Mais próximo de sua real experiência veneziana, Byron escreveu "Beppo" (Nova Fronteira), que é um extraordinário e divertido poema narrativo.
Ruskin, 30 anos mais tarde, encontrou uma Veneza totalmente desertada pelos restos da festa do século 18. De qualquer forma, já por índole, Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos.
Todos nós, quando viajamos, somos um pouco Ruskin e um pouco Byron. Mas meu pai era mais Ruskin, e eu, mais Byron.
Ora, acabo de voltar de Veneza e, no último dia, tive um encontro do qual Byron teria gostado (Ruskin também, só que menos).
Sou um leitor das aventuras de Corto Maltês, os quadrinhos de Hugo Pratt (em português, pela Pixel). No fim de "Favola di Venezia", Pratt, perdido num emaranhado de personagens e situações, declara que existem, em Veneza, "três lugares mágicos e escondidos: um está na calle do Amor dos Amigos; outro, perto da Ponte das Maravilhas; o terceiro, na calle dos Marranos, perto de San Geremia no Gueto".
Quando os venezianos estão em apuros, eles procuram esses lugares secretos e, "abrindo as portas que estão no fundo dos pátios, vão-se embora para lugares lindíssimos e para outras histórias". Corto Maltês bate numa porta e diz: "Sou Corto Maltês, deixo esta história e peço para entrar numa outra, num outro lugar". Pronto, ele começa uma nova aventura.
Um propósito de minha estadia veneziana era de encontrar os três lugares. Deixando de lado a calle dos Marranos (que não consigo identificar), entrei em todos os pátios nos arredores da Ponte das Maravilhas e do Ramo do Amor dos Amigos. Mas como saber quais eram as portas mágicas?
O livro "La Guida di Corto Maltese alla Venezia Nascosta" (o guia de C. M. à Veneza escondida), de G. Fuga e L. Vianello (Rizzoli, existe também em inglês), é perfeito para passear por Veneza num estilo mais Byron que Ruskin. Mas a leitura não me ajudou a encontrar as portas.
Finalmente, na tarde de sábado passado, na livraria AcquaAlta, na Longa Santa Maria Formosa, conversei com um senhor de barba branca, que estava folheando uma aventura de Corto Maltês. Imaginei que ele pudesse ter sido um amigo de Pratt, dos anos 1970, companheiro das noites no restaurante Graspo de Uva.
O fato é que ele se lembrava da história dos três lugares de Veneza e, quando lhe perguntei se ele saberia indicar as famosas portas, ele me respondeu: "A mim me parece" (é assim que fala um veneziano) "que, se você as procura, é que você já as encontrou". E logo ele se foi.
Como interpretar essa frase a la Pascal? Entendi assim: se eu acreditava numa ficção a ponto de procurar os lugares que ela inventa, eu não precisava de mais nada para passar de uma história a outra. Pois o segredo é inventar.
Pensei que Ruskin teria gostado da ideia de procurar os lugares mencionados por Pratt, mas só Byron teria aberto as portas. Ele, aliás, não parava de abrir portas e fugir para novas histórias. Vai ver que, em Missolonghi, quando sumiu, aos 36 anos, combatendo pela independência da Grécia, ele não morreu, apenas abriu mais uma porta. E foi para outra.

Folha de S. Paulo (15 de julho de 2010)

100% - Luiz Felipe Pondé


Atenção, pecadores e viciados em sexo, comida, bebida, dinheiro e poder: vocês estão ultrapassados. Há uma nova ganância no ar: a mania de qualidade de vida e saúde total. Esta ganância é o que o jornal "Le Monde Diplomatique" já chamava de "la grande santé" ("a grande saúde") nos anos 90. A mania de ter a saúde como fim último da vida.
Acho isso antes de tudo brega, mas há consequências mais sérias que um simples juízo estético para esta nova forma de ganância. Consequências morais, políticas e jurídicas: o controle científico da vida.
Agora esses fanáticos estão a ponto de demonizar o açúcar, a gordura e o sódio. Querem fotos de gente morrendo de diabetes no saco de açúcar ou de ataque cardíaco nas churrascarias. O clero fascista da saúde não para de botar para fora sua alma azeda.
Mas, como assim, ganância? Sim, esta ganância significa o seguinte: quero tirar do meu corpo o máximo que ele pode me dar. Inevitavelmente fico com cara de monstro narcisista quando dedico minha vida à saúde total. Sempre sinto um certo ar de ridículo nesses pais que obrigam seus filhos a comer apenas rúcula com pepinos e cenoura desde a infância.
Suspeito que os "purinhos", no fundo, se deliciam quando veem fumantes morrerem de câncer ou carnívoros morrerem do coração. Sentem-se protegidos da morte porque vivem como "pombinhos da saúde". São medrosos. A vida é desperdício, e ganancioso não gosta disso.
No caso da morte, probabilidade é como gravidade: 100% de certeza. Logo, a luta contra a morte é uma batalha perdida, nunca uma vitória definitiva.
Se você não morrer de acidentes (carro, avião, atropelamentos, assaltos, homicídios) ou de epidemias (tipo pestes) ou por endemias (tipo doença de chagas), ou de doença metabólica (tipo diabetes) ou de doenças cardiovasculares (tipo AVC ou acidente cardiovascular e ataque cardíaco), você sempre morrerá de câncer.
Claro, ainda temos contra (ou a favor) a tal herança genética. Você passa a vida comendo rúcula e morre de AVC porque suas "veias" não valem nada. Que pena, passou uma vida comendo comida sem graça e morreu na praia. E vai gastar dinheiro com hospital do mesmo jeito, ou, talvez, mais ainda. Sorry.
Logo, caro vegetariano, escapando de doenças cardiovasculares porque você evitou (religiosamente) gorduras supostamente desnecessárias, você pode simplesmente morrer de câncer porque deu azar com o pai que teve ou porque, no fim, tudo vira câncer, não sabia?
Um dia, esses maníacos da saúde total desejarão processar os pais por terem deixado que eles comessem coxinhas e brigadeiros quando eram crianças ou porque simplesmente tinham maus genes em seus gametas.
Sinceramente, não estou convencido de que viver anos demais seja muito vantajoso. Sem "abusar" da comida, da bebida, do tabaco, do sexo, das horas mal dormidas, não vale a pena viver muitos anos.
A menos que eu queira ser uma "freira feia sem Deus", o que nada tem a ver com freiras de verdade, uso aqui apenas a imagem estereotipada que temos das freiras como seres chatos, opressores e feios , ou seja, uma pessoa limpinha, azeda e repressora.
Como diz meu filho médico de 27 anos, "nunca houve uma geração tão sem graça como esta, obcecada por viver muito". Eu, pessoalmente, comparo esta geração de pessoas obcecadas pela saúde àqueles personagens de propaganda de pasta de dentes: com dentes branquinhos, cabelos bem penteados e com cara de bolha (ou "coxinha", como se diz por aí).
Dei muita risada quando soube que alguns cientistas estavam relacionando câncer de boca à prática frequente de sexo oral. Será que sexo oral dá cárie também? Terá a vida sentido sem sexo oral? Fazer ou não fazer, eis a questão!
Essa ciência horrorosa da saúde total deverá logo descobrir que sexo oral faz mal, e aí, meu caro "pombinho da saúde", como você vai fazer para viver sendo perseguido pela saúde pública? Talvez, ao final, não seja muito problema para você, porque quem é muito limpinho não deve gostar mesmo dessa sujeira que é trocar fluidos e gostos por aí.

Folha de S. Paulo (12 de julho de 2010)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Preços e valores - Contardo Calligaris


QUANDO PASSO por Veneza, sempre visito a livraria antiquária Linea d'Acqua, na calle della Mandola, uma das últimas que sobram na cidade.
Não sou mais colecionador (vendi minha biblioteca quando deixei os EUA, em 2004), mas os livros antigos continuam sendo, para mim, uma fonte de prazeres sensoriais e intelectuais. Gosto de manuseá-los e gosto de conversar sobre edições, encadernações etc.
Passei um tempo com Luca Zentilini, o livreiro de Linea d'Acqua, examinando dois livros.
Um era a primeira edição de "The Stones of Venice", de Ruskin: três volumes, publicados entre 1851 e 1853, in-oitavo, na encadernação original da editora. Não faltava nenhuma das numerosas pranchas (muitas aquareladas) que reproduzem os desenhos arquitetônicos originais de Ruskin.
"As Pedras de Veneza" (Martins Fontes) tornou-se e continua popular (em todas as línguas) numa versão reduzida, que permite levar o volume consigo na mala. Mas, cuidado, o livro não é apenas um extraordinário guia de viagem, é também das grandes obras do século 19.
A edição original, nunca reimpressa, foi de menos de mil exemplares. Quantos desses conjuntos de três volumes ainda existem?
O outro livro que Zentilini me mostrou era a edição de Francesco Franceschi do "Orlando Furioso", de Ludovico Ariosto. Quem não conhece essa maravilhosa edição, de 1565, veja uma página em http://migre.me/Ue6o. O exemplar era perfeito, com todas as gravuras.
O livro de Ruskin custava 2.000 (R$ 4.450). A edição de 1565 do Ariosto custava o dobro.
Caros? Sim, certo. Só que, não muito longe de Linea d'Acqua, na calle Larga 22 Marzo, não faltam clientes para vestidos ou acessórios produzidos em série, que custam tanto quanto um Ariosto de 1565, se não mais.
Justamente, foi no começo do século passado que as bibliotecas começaram a ser dizimadas por seus próprios donos. Arrancar páginas de um livro antigo acaba com a integridade da obra (e também com seu valor de revenda), mas, convenhamos: páginas emolduradas podem ser mostradas, ostentadas. Ou seja, uma gravura na parede vale mais que um livro com todas suas gravuras, fechado, na estante.
Em Verona, na via Dietro San Sebastiano, há uma alfaiataria e camisaria napolitana (na Itália, isso é um pleonasmo: em alfaiataria, napolitano significa tradicional).
O alfaiate me explicou que propõe dois tipos de camisa, ambas nos mesmos algodões "doppio ritorto". O tipo mais barato é confeccionado a máquina, salvo, "obviamente", para a costura que segura a manga à camisa e que deve sempre, imperativamente, ele explicou, ser feita a mão, sob pena de uma "desconfortável rigidez".
O outro tipo de camisa é inteiramente costurado a mão, o que garante uma mobilidade e um caimento que uma camisa costurada a máquina nunca terá. Pois bem, o preço de uma camisa costurada a mão é de 100 (R$ 222).
Enquanto o alfaiate napolitano e eu levávamos essa conversa na alfaiataria deserta, a via Mazzini, a poucos metros de lá, estava abarrotada de turistas comprando camisas mais caras, fabricadas nos quatro cantos do Oriente e, às vezes, em tecidos sintéticos duvidosos.
Perguntei ao alfaiate por que, ao seu ver, os clientes preferiam as lojas da via Mazzini ao seu ateliê. Ele respondeu, com sabedoria certa.
Primeiro, há a necessidade da satisfação imediata: o consumidor quer pagar e levar para casa (nada de encomendar, tirar as medidas do corpo, esperar a primeira e a segunda prova etc.).
Segundo, e mais importante, os produtos das lojas da via Mazzini têm algo que suas camisas e seus ternos não têm. Imaginei que ele fosse me confessar alguma inferioridade de seus artefatos, mas ele acrescentou apenas: "Os produtos da via Mazzini têm uma marca, uma marca que todas as pessoas reconhecem".
P.S.: Para Clóvis Rossi e os amigos que pediram que comentasse a derrota de seleção. Depois do jogo contra a Holanda, postei isto no meu Twitter (@ccalligaris): 1) às vezes a gente ganha, às vezes não; 2) ganhar não é um direito natural nem adquirido; 3) o Brasil é mais do que uma seleção de futebol.

Folha de S. Paulo (08 de julho de 2010)

A viúva e o cowboy - Luiz Felipe Pondé


NÃO GOSTO de arte como ferramenta de cidadania. Uma palavra que, com o tempo, passou a me encher o saco foi "cidadania".
"Faixa cidadã" (faixa para motocicletas), "teologia cidadã". Desta, então, eu não tenho a mínima ideia do que seja.
Talvez (arrisco uma hipótese, toda minha, mas inspirada no que poderia ser a defesa da "cidadania bíblica dos gays"), seja uma releitura da Bíblia a partir da "Queer Theology" ("teologia bicha")? Ou seja, quem sabe Jesus e seus discípulos formavam uma comunidade gay e a traição de Judas teria sido uma crise de ciúmes porque Jesus preferia "meninos" como João. Humm...
Tem mais: "Pedagogia cidadã" (seria: "Não reprove ninguém, respeite os direitos dos alunos não saberem nada da matéria e permitam que eles construam as avaliações coletivamente"), ou "geografia cidadã" (no lugar de ensinar a localização dos países na aula de geografia, obrigue os alunos a saberem de cor a gloriosa história do sindicato dos boias-frias), ou "sexo cidadão" (deve ser sexo sem invadir a intimidade do/a outro/a!!).
Nem o coitado do Rousseau (e seus tarados jacobinos), que amava a humanidade, mas abandonou os filhos e a esposa, imaginou que levassem tão longe seus pobres delírios em suas caminhadas solitárias.
E o pior é a história do "voto cidadão" e "a festa da democracia para a qual o título é seu convite". Sou obrigado a votar e ainda chamam isso de "direito cidadão". Quer saber? Deixem-me em paz e não me obriguem a votar. Acho que o voto deveria ser facultativo no Brasil, como é na maioria dos países civilizados do planeta.
Mas eu dizia que não gosto desse negócio de arte como ferramenta de cidadania. Por quê? Porque faz da arte coisa de retardado.
Antes de tudo, nada contra o uso de arte nas escolas. Mas, é claro, a maioria de nós (incluindo a mim mesmo que não sei desenhar nem uma casinha) não é capaz de qualquer arte. Este papo de que "todo mundo tem uma competência que lhe define" é conversa mole de pedagogo de autoajuda.
Melhor logo dizer que o universo conspira a favor de todos os alunos e que basta se concentrar que você vira Da Vinci ou Shakespeare. A história do mundo, seja ela artística, política, econômica, social ou científica, sempre foi feita por alguns poucos seres humanos. A maioria nunca fez nada além de tocar sua vidinha medíocre e continua assim, afora a "publicidade cidadã".
Num sábado de preguiça, eu e minha bela esposa assistimos na TV a um filme de cowboy, desses antigos nos quais homem é homem e mulher é mulher (que saudade...), com James Stewart, Rachel Welch, Dean Martin e George Kennedy chamado "O Preço de um Covarde".
Nada deste papo furado de "filme cidadão", onde as mulheres lutam com espadas para provar que são iguais aos homens (ou melhores do que os homens), ou heróis se emocionam diante de uma lagartixa em agonia ou lutam em favor de um país africano onde todo mundo é santo, menos os brancos interesseiros. Enfim, essa arte com compromisso social é sempre lixo.
O filme apresenta a vida como ela é: sem coerência, sem roteiro moral prévio, submetida ao acaso desarticulador de toda esperança vã. Rachel Welch é uma recém-viúva milionária. É pega como refém pelo bando de Dean Martin, condenado à forca, mas que é salvo pelo irmão James Stewart.
Este é um homem generoso que busca salvar seu irmão não só da forca, mas do desencanto com a vida que o levou ao crime. George Kennedy, xerife da cidade e apaixonado por Rachel Welch, é um homem honesto e virtuoso que irá corajosamente à caça do bando.
Dean Martin encontra na inesperada paixão entre ele e Rachel Welch o motor suficiente pra fazê-lo escutar o conselho de seu irmão: "Deixe a vida criminosa e vá fazer uma família".
O xerife, quando consegue prender o bando, pede a mão da bela mulher, mas ela recusa, ainda que ele seja honesto e devoto a ela. Ela prefere o criminoso. Este, em claro processo de redenção, acaba morto (junto com seu irmão), destruindo toda a esperança.
Qual é a moral dessa história? Nenhuma. Ou, arrisquemos uma: a vida é cega.

Folha de S. Paulo (05 de julho de 2010)


quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Toy Story" - Contardo Calligaris


Assisti a "Toy Story 3" na quinta passada. Era noite, e, na sala, só havia adultos, que saíram todos comovidos, sorrindo e fungando. Talvez nosso envelhecimento se pareça um pouco com o destino dos brinquedos abandonados pelas crianças que se tornam grandes.
Por exemplo, quando os filhos não brincam mais conosco, antes de tomar o caminho do sótão-asilo ou o do lixão-cemitério, sonhamos com a possibilidade de sermos, durante um tempo, brinquedos para nossos netos. Bem como os protagonistas de "Toy Story 3".
O filme me deixou também com saudade da fantasia livre e maluca que organizava meus jogos de criança. Inevitavelmente, acabei pensando nas gerações de brinquedos que me acompanharam na infância.
Quando meus pais morreram, eu morava longe, e meu irmão se ocupou de esvaziar o apartamento de nossa infância.
Foi assim que ele adentrou sozinho pelos dois imensos closets da sala, que nós chamávamos de "cavernas de Ali Babá" e que continham, entre inúmeras outras coisas, nossos brinquedos aposentados.
Meu irmão decidiu transferir esses sobreviventes para sua casa e, ao pedir meu consentimento, mencionou os mais valiosos, o trem elétrico, os soldadinhos de Fort Apache. Quanto aos outros, eu imaginava que ele os doaria ou descartaria.
Nada disso. Nestes dias, passando duas semanas na Itália, com "Toy Story" na lembrança, explorei, pela primeira vez, um armário de três portas que está no corredor do apartamento veneziano que divido com meu irmão.
Encontrei nossos velhos jogos de sociedade, quebra-cabeças, um "Pequeno Químico", um porta-aviões sem aviões, caminhões, robôs etc. Enfim, atrás desse amontoado, esbarrei num helicóptero, bem guardado em sua caixa original, com um ar de novo. Desse brinquedo me lembrei perfeitamente.
No dia de Natal, meu irmão e eu acordávamos pelas quatro da manhã, ansiosos para conhecer, enfim, nossos presentes, todos embrulhados embaixo da árvore. Abríamos os pacotes e brincávamos sozinhos, antes de meus pais acordarem.
Vencidos pelo cansaço, voltávamos para cama levando os brinquedos dos quais mais tínhamos gostado e que dormiriam conosco mais uma hora ou duas.
No Natal dos meus sete ou oito anos, eu ganhei um helicóptero. Não era teleguiado (era o começo dos anos 50), mas voava. Sim senhor, voava mesmo. Ele era ligado por um cabo a um comando mecânico (não elétrico): ao girar (freneticamente) uma manivela, o movimento era multiplicado e transmitido até às pás do rotor, de forma que, efetivamente, o helicóptero se levantava até o braço da gente cansar.
Amei o helicóptero. Amei a sensação de que ele voava não por alguma mágica, mas pelo meu esforço. Brinquei com ele mais ou menos uma hora, até que, inexplicavelmente, ele quebrou; eu acionava a manivela, ouvia um ruído de engrenagens infelizes, e as pás permaneciam paradas.
Não tenho como reconstruir exatamente a cadeia de meus pensamentos; só sei que o que prevaleceu não foi a pena pela perda do brinquedo novo, mas uma espécie de sentimento protetor. Explico.
Eu não sentia culpa (tinha brincado do jeito que era mesmo para brincar com o helicóptero), mas não aguentava a ideia de que meus pais tivessem notícia da morte precoce de seu presente, que, certamente, eles tinham escolhido com carinho e pago com esforço. Em suma, eu precisava proteger os meus pais.
Não disse nada; coloquei o helicóptero de volta na caixa e o levei para a cama comigo. Quando acordei, não sei como, consegui convencer a todos de que aquele era meu presente preferido, por isso eu não queria que outros brincassem com ele, nem meu irmão e ainda menos os sobrinhos convidados para o almoço de Natal.
Milagrosamente, mantive essa ficção durante os dias seguintes: adorava o helicóptero, e ninguém podia tocar nele.
De fato, ninguém nunca mais brincou com ele. Eu tampouco, é claro; brincar com ele quebrado teria sido revelar minha mentira.
E agora o helicóptero está aqui, na sua caixa de origem -símbolo de minha vontade sofrida e um pouco louca de fazer e proteger a felicidade de meus pais.
Tem cara de novo, mas é um pouco tarde para invocar a garantia.

Folha de S. Paulo (1º de julho de 2010)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A medicina de Tchekhov - Luiz Felipe Pondé


HÁ 150 ANOS o escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904) nascia. Médico, Tchekhov tinha um sentido aguçado para a miséria concreta da vida humana.
Partilho com ele de um grande ceticismo com relação à crença cega no progresso, tão comum entre os tolinhos de hoje em dia.
Qual a visão de mundo de Tchekhov? Qual é a marca profética (comumente referida na crítica especializada) dos autores russos do século 19 com relação à modernização? No caso de Tchekhov, contra o delírio de autossuficiência moderna, essa marca está na sua visão de que a humanidade vive contra um cenário infinito que ultrapassa cada um de nós e a cada "era histórica", retirando-nos a possibilidade de avaliar o verdadeiro sentido de nossos atos.
Apenas aqueles que viverão 500 anos depois de nós poderão, talvez, ver algum obscuro sentido em nossas vidas.
Ao contrário dos "ocidentalizantes" (termo comum na Rússia do século 19 para descrever os que abraçavam o avanço moderno sem dúvidas), que se viam como donos do próprio destino, Tchekhov logo percebeu que a modernização seria apenas mais uma experiência, como tudo que é humano, de fracasso com relação à posse do destino.
Contra o ridículo orgulho moderno, ele vê que a modernidade seria uma série de encontros e desencontros com as eternas sombras do humano. Quais seriam as sombras "modernas"? Os ganhos sociais (a superação do "chicote", como dizia Tchekhov, um descendente de servos) e técnicos (os ganhos da medicina no combate, por exemplo, à cólera, que tanto ocupou sua vida de médico de província) que cobrariam um alto preço (perda dos laços comunitários, mergulho na desumanização instrumental em busca de uma vida melhor, "bregarização da vida"), representado de forma cirúrgica em sua obra.
Esta paciência para com o obscuro sentido de nossas vidas é atípica em uma época como a nossa, marcada pela impaciência com o vazio da vida. Fingimos que sabemos o sentido de nossas vidas, vendo-o como sendo o "avanço" ou o "progresso" técnico, ético e social. Para cada avanço, um afeto se esvazia sob o dilaceramento das relações (burocratizadas) que se dissolvem no ar. Os afetos e não as ideias nos humanizam, e afetos não são passíveis de uma geometria do útil.
É exatamente da inutilidade dos afetos que fala Tchekhov em peças como "Tio Vânia" ou "Três Irmãs", nas quais as pessoas são tragadas pelos avassaladores detalhes da vida numa marcha cega em direção ao desperdício da sensibilidade humana. Na peça "A Gaivota", uma infeliz gaivota abatida torna-se metáfora de todo o drama: assim como é abatida uma gaivota (pelo diletante desejo humano da caça), somos todos abatidos ao longo da vida, por diletantismo do destino.
Entretanto, que os tolinhos de plantão não pensem que um grande anatomista da alma humana como Tchekhov pensaria bobagens como "se não matarmos gaivotas o mundo será melhor".
É no confronto com as contradições internas da sua obra que podemos perceber que Tchekhov não era um "tolinho progressista" que acreditava numa humanidade higienizada de suas misérias morais.
No conto "O Homem Extraordinário", um homem insuportavelmente honesto, reto e justo (o "insuportável" fica por conta da fala de sua esposa na agonia do parto) destrói a possibilidade da vida cotidiana, em nome de uma vida absolutamente ética: sem luxos, sem desperdício, sem abusos.
Este homem extraordinário dificilmente abateria gaivotas por diletantismo, mas, no lugar do diletantismo da caça, ele asfixiaria a respiração humana sob a caricatura morta de uma vida corretíssima.
No "Jardim das Cerejeiras", uma família da pequena aristocracia rural russa empobrecida, dona de uma propriedade com um jardim de cerejeiras, perde a posse das terras para um descendente de servos, agora livre, burguês e crente no futuro. No lugar deste velho e inútil jardim será construído um loteamento de férias para a "classe média" vir com seu direito brega à felicidade e seu amor ao "futuro".
Pois é ele, o habitante brega desses loteamentos, o herdeiro da Terra e dele será o reino dos céus.

Folha de S. Paulo (28 de junho de 2010)


quinta-feira, 24 de junho de 2010

Torcer ou pensar, eis a questão - Contardo Calligaris


Pela minha história, sinto-me parte de várias nações e, na Copa do Mundo, torço por todas elas. Quando se enfrentam duas seleções com as quais me identifico, sou privilegiado: seja qual for o desfecho, um de meus times preferidos ganhará.
Embora tenha uma verdadeira repugnância por qualquer forma de nacionalismo, a torcida da Copa do mundo é a única à qual consigo me juntar. É porque, na Copa, os torcedores vibram, festejam ou se desesperam sem transformar os adversários em objetos de ódio e desprezo.
Exemplo. No jogo de domingo entre Brasil e Costa do Marfim, o time africano pegou pesado, a ponto de me inspirar uma certa antipatia. Também, por ufanismo continental, o público sul-africano torceu pela Costa do Marfim e aplaudiu a expulsão de Kaká, cuja única culpa foi de se irritar e manifestar sua irritação.
Pois bem, ninguém, nem o exuberante pessoal na sacada do prédio em frente do meu, gritou impropérios contra o time da Costa do Marfim e ainda menos contra seu povo. Tampouco ouvi insultos contra o público sul-africano.
Na hora da expulsão de Kaká, ecoou, isso sim, um único berro que expressava uma forte dúvida sobre a honra e o recato da mãe do árbitro. Mas aí, também, ninguém é de ferro (estou brincando).
Por que é possível torcer na Copa do Mundo sem ser devorado pela irracionalidade que afeta as torcidas organizadas de nossos clubes?
A Copa acontece só a cada quatro anos, ou seja, as rivalidades são esporádicas, não se cristalizam. Além disso, os adversários da Copa são variados, distantes e diferentes de nós, enquanto, em geral, os humanos gostam de odiar seus vizinhos.
Justamente, quando existe uma rivalidade estabelecida entre duas seleções nacionais, é entre países próximos, com similitude de destino, como Brasil e Argentina.
Mas mesmo esse tipo de rivalidade "tradicional" não se compara com o ódio que opõe as torcidas de clubes da mesma cidade e do mesmo Estado. Essas torcidas são vítimas dos piores efeitos do grupo sobre o pensamento e os critérios morais do indivíduo.
O que é efeito de grupo? Exemplo: UM jovem playboy entediado não colocaria fogo num índio que dorme num abrigo de ônibus. QUATRO playboys entediados são capazes disso; é possível, aliás, que os quatro se reúnam justamente para, juntos, autorizar-se a fazer algo que, separados, eles nunca fariam.
Vamos agora a um jogo entre São Paulo e Corinthians (ou qualquer dupla de rivais da mesma cidade).
O torcedor corintiano, que está do meu lado, bem antes que a bola role, já roga pragas à torcida do São Paulo, que são "a bicharada" ou "os bambis". Nosso corintiano, uma vez extraído de sua torcida, não imagina, obviamente, que todos os são-paulinos, jogadores e torcedores, sejam "viados".
Tem mais: na grande maioria dos casos, na sua vida "real", fora do estádio, ele tampouco pensa que a opção sexual de alguém possa servir de insulto, ou seja, ele não acredita que os são-paulinos sejam bichas e não acredita que "bicha" seja um insulto.
Meu amigo torcedor, aliás, poderia ser ele mesmo homossexual; tanto faz, não por isso ele deixaria de gritar "bicha-raaaada". O mesmo vale para um são-paulino e seus gritos contra a torcida corintiana.
Resumindo, por fazer parte da torcida e para se integrar nela, o torcedor diz ou grita algo que não tem nada a ver com o que ele pensa quando pensa sozinho (que, cá entre nós, é o único jeito de pensar).
Por isso, só consigo torcer na Copa, e para quatro nações. Isso sem contar os times pelos quais me apaixono "só" porque jogam bem.


Começo hoje meu Twitter: ccalligaris, com o "s" final que falta no meu e-mail, www.twitter.com/ccalligaris. Postarei minirelatos de eventos do cotidiano, reflexões (minhas ou lidas, ouvidas e citadas), fotografias, indicações de filmes, peças, livros, exposições (e, por que não, restaurantes, pratos e vinhos). Haverá avisos de atividades (palestras etc.) e crônicas de minhas viagens.
Em outras palavras, será um microdiário -com um pouco de sorte, um novo estilo; de qualquer forma, uma nova experiência. Como se diz, todos estão convidados.

Folha de S. Paulo (24 de junho de 2010)

terça-feira, 22 de junho de 2010

Quem gosta das putas? - Luiz Felipe Pondé


"A HIPOCRISIA é a homenagem que o vício presta à virtude", dizia o moralista francês La Rochefoucauld. "Moralista", em filosofia, quer dizer anatomista da alma e não alguém que cospe regras em nossa cara.
Hoje a hipocrisia é moeda corrente de grande parte da chamada crítica social. Neste caso, o vício não se vê como vício (o vício aqui é a má-fé em si), mas como consciência social, termo que descreve uma das maiores falácias chiques de nossa época. Quer ver?
Peguemos o caso do filme baseado em "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água", de Jorge Amado, e o debate ao redor da felicidade como "vida safada" ou realização livre do desejo que critica e expõe a hipocrisia pequeno-burguesa.
O personagem era um homem com vida medíocre e "respeitável". É comum criticar a chamada pequena burguesia por sua hipocrisia miserável: emprego medíocre, poupança medíocre, amor medíocre, cotidiano medíocre, em que todos são lobos desdentados, devorando uns aos outros num ritual de opressão mútua. Quincas tem uma vida sem graça e uma mulher típica da pequena burguesia (infeliz, sem sexo, uma megera).
De repente esse homem "se revolta" e mergulha naquilo que muitos intelectuais de então (numa mistura de marxismo de folhetim e Sade popular) veem como crítica social: sua recusa da hipocrisia pequeno-burguesa se materializará num cotidiano de cachaça, mulheres, prostitutas, jogo, enfim, vida mundana.
Suspeito que, se a crítica social, conhecida como uma crítica fincada no tripé "gênero (feminismo e movimento gay) classe e raça", tivesse surgido há 2.500 anos, não teríamos Aristóteles, santo Agostinho, Shakespeare, Dostoiévski ou Kafka (para citar apenas alguns gigantes que teriam preconceitos de gênero, classe e raça).
Provavelmente, seriam todos monótonos, sem originalidade, castrados, chatos e medrosos, como todo mundo que teme essa turba da crítica social da nova esquerda, uma das piores farsas que já se arrastou pela Terra.
Por que estou dizendo isso? Porque, apesar de dizer por aí que personagens assim "são o máximo" porque caem na "noite de pobre", Quincas não se salvaria da crítica social hipócrita que domina parte do cenário "culto" contemporâneo.
Afora sua correta farra de pobre, ele é machista (faz uso das mulheres como objeto comprando as "coitadinhas" das putas -acredito que a maioria das putas escolhe essa vida porque gosta da coisa mesmo), "opressor" de sua "esposa vítima" para quem nega a "justa" satisfação de suas necessidades de mulher (ela seria uma vítima do desinteresse de um marido incapaz de amá-la tal como se "exige" dos casais) e alienado, sem questionar a "sociedade injusta que o gerou". Hoje em dia, o ideal estético da crítica social seria um Quincas castrado.
Outro erro é assumir a hipocrisia como traço "exclusivo" da pequena burguesia. A pequena burguesia tem um modo específico de hipocrisia. Mas maior má-fé é supor que criticar a hipocrisia da pequena burguesia seja superar a hipocrisia porque esta seria um fenômeno "de classe". Toda a "dialética da luta de classes" se resume na dinâmica que reúne a inveja (dos pobres) e o egoísmo (dos ricos) num rito ancestral de sangue.
A hipocrisia é um elemento intrínseco da dinâmica civilizada (como reconhecem os moralistas franceses, sem por isso fazer o elogio dela). Negar isso (o caráter universal da hipocrisia) é fundar um novo tipo de má-fé, mais falsa ainda, porque se traveste de pureza d'alma.
A necessidade da hipocrisia como elemento da vida civilizada se dá porque os seres humanos não se suportam plenamente. E não há como ser diferente. A "verdade" pode ser mortal na vida social. Alguns sobrevivem graças aos seus vícios, outros perecem graças às suas virtudes. A força desse personagem não está em seu caráter crítico da pequena burguesia, mas sim em seus vícios (mulheres, bebida, jogos), sem perdão. Fazer dele um herói da "virtude política" seria como lhe dar um enterro "respeitável", pequeno-burguês, em vez de levá-lo, mesmo que morto, ao bordel, para "ver" suas deliciosas putas.

Folha de S. Paulo (21 de junho de 2010)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Os adolescentes que merecemos - Contardo Calligaris


ABBY SUNDERLAND nasceu na Califórnia, em outubro 1993. A família vivia num barco, ao longo da costa do Pacífico.
O irmão mais velho de Abby, Zac, aos 17 anos, tornou-se o mais jovem velejador a circum-navegar a Terra sozinho. O recorde de Zac não resistiu muito tempo: logo, Michael Perham, um adolescente inglês um ano mais jovem que Zac, completou sua volta solitária ao mundo. Note-se que Perham, aos 14 anos, já tinha atravessado o Atlântico sozinho.
Abby também, desde seus 13 anos, sonhava em circum-navegar a Terra. No começo deste ano, aos 16, sozinha, ela largou as amarras de seu veleiro de 12 metros e desceu o Pacífico Sul. Passou o Cabo Horn, atravessou o Atlântico e passou o Cabo de Boa Esperança, lançando-se no Oceano Índico. Entre a África e a Austrália, Abby encontrou uma tempestade à qual o mastro de seu barco não resistiu. No sábado passado, depois de dois dias à deriva num mar infernal, ela foi resgatada.
Pela internet afora e na imprensa dos EUA, os pais de Abby estão sendo criticados por um coro indignado: como vocês puderam deixar uma menina de 16 anos errar sozinha pelo mar e pelos portos? Fora tsunamis e tempestades, o que dizer dos meses insones espreitando o mar e o vento a cada meia hora, da solidão, do trabalho incessante, do frio, do desconforto de uma navegação solitária ao redor do mundo? E os piratas ao sul da Malásia? Por qual permissividade maluca vocês aceitaram que Abby se lançasse numa aventura que seria arriscada para gente grande?
Já a bordo do barco que a resgatou, Abby escreveu no seu blog: "Há uma quantidade de coisas que as pessoas podem estar a fim de culpar pela minha situação: minha idade, a época do ano e muito mais. A verdade é que passei por uma tempestade, e você não navega pelo Oceano Índico sem entrar em, no mínimo, uma tempestade. Não foi a época do ano, foi apenas uma tempestade do Oceano Sul. As tempestades fazem parte do pacote quando você veleja ao redor do mundo. No que concerne à idade, desde quando a mocidade do velejador cria ondas gigantescas?".
Se você duvida que Abby tivesse a maturidade necessária para sua empreitada, leia o diário da viagem (www.soloround.blogspot.com) -sobretudo as notas de Abby durante a interminável navegação no Atlântico Sul.
Os que censuram os pais de Abby afirmam que nunca autorizariam seus rebentos a velejar sozinhos ao redor do mundo porque, aos tais rebentos, falta seriedade e falta experiência. Eles devem ter razão -afinal, eles conhecem seus filhos. Mas cabe perguntar: essa falta de seriedade e experiência é efeito de quê? Da simples juventude? Duvido: La Pérouse, o navegador francês, aos 17 anos, em 1758, já estava combatendo os ingleses ao largo de Terra Nova. Então, efeito de quê?
Pois é, provavelmente, os mesmos pais que se indignam com a "irresponsabilidade" dos genitores de Abby permitem a seus filhos, mais jovens que Abby, de sair em baladas nas quais os únicos adultos são os que vendem drogas e bebidas.
Será que a volta para casa de madrugada, num carro dirigido por amigos exaustos, exaltados ou sonolentos, é menos perigosa do que a circum-navegação do mundo num veleiro pilotado por Abby, animada há anos por um desejo intenso e focado? E, de qualquer forma, qual das duas experiências você prefere para seus filhos?
O fato é que muitos pais preferem que os filhos errem como baratas tontas, de festinha em festinha. Por quê? Simples: assim, os filhos ficam infinitamente mais dependentes.
E os pais modernos, em regra, querem os filhos por perto; eles adoram que os filhos demonstrem que eles não são suficientemente maduros para sair pelo mundo e para correr os riscos que o desejo acarreta.
Não deveríamos nos perguntar qual é a loucura dos pais que empurraram Zac, Abby e Michael mar adentro, mas qual é a loucura dos pais que preferem largar seus filhos nas noites, em que vodca, cerveja, maconha, ecstasy e papo furado servem para convencer os próprios adolescentes de que ainda não começaram a viver e, portanto, vão precisar dos adultos por muito tempo.
Comentando a aventura de Abby, um pai me disse: "Nunca deixaria minha filha navegar sozinha, eu não quero perdê-la". Pois é, "não quero perdê-la" em que sentido?

Folha de S. Paulo (17 de junho de 2010)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

As moscas livres - Luiz Felipe Pondé


SOU UM HEREGE: acredito mais em horóscopo do que nessa "ciência da sustentabilidade".
Duvido desse personagem, "o ativista", que mais parece uma mosca que voa sobre o desespero alheio. Confio na Cruz Vermelha, nos Médicos sem Fronteira, mas desconfio desse personagem.
Pergunto de onde vem essa grana toda. Hoje em dia ser ativista pode ser uma boa pedida para quem gosta de conhecer o mundo e aparecer na mídia como bonzinho.
Afinal, quem pagou a conta daquela "flotilha da liberdade" (que brincou com o estado de guerra continuo que o Oriente Médio vive há uns três mil anos)? Santa Klaus?
Imagina só que legal para o book de um ativista poder dizer "I was there"... Tem ativista que vai viver uns vinte anos por conta daquela viagem "humanitária". Vai acabar pousando em campanha publicitária por aí.
Voltando a sustentabilidade. Claro que devemos cuidar da natureza. Uma coisa é impedir que uma fábrica jogue lixo no mar, outra coisa é calcular quanto uma pessoa polui o mundo em seu cotidiano e gerar impostos, leis, moral e espiritualidade em cima disso.
Quando se delira com demônios, o ridículo é visível. Mas quando o delírio vem regado a cálculos "científicos", se torna invisível. A modernidade tem um fetiche pelo controle cientifico da vida, não resiste ao gozo da opressão em nome da ciência.
Como alguém pode conceber uma "ciência da sustentabilidade" sem a paranoia de uma gigantesca burocracia de controle dos detalhes da vida?
Controlar desmatamento é uma coisa, mas calcular gases emitidos por vacas ou número de voos individuais ou sapatos "não sustentáveis" é loucura. O ordenamento sustentável da vida se tornará um tipo de totalitarismo sem precedentes.
E aí chegamos à assustadora alma fascista da cultura verde. Cuidado com o que come, onde anda, como vai ao trabalho, como faz sexo. Não viaje de avião, não coma picanha, não enterre ou queime cadáveres. Não use sapatos, não use casacos (vistam-se com folhas de parreira, talvez?).
Como toda forma de fascismo, sempre se trata, ao final, de uma forma de ódio aos humanos reais, no caso, em nome do amor às lesmas.
Ninguém percebe a marca fascista da "ciência da sustentabilidade"? Sistemas totalitários não precisam ser sistemas centralizados, como no modelo do fascismo histórico. Nem tampouco o que importa é o "conteúdo ideológico", mas sim a forma de controle cotidiano de hábitos considerados "poluidores da pureza" desejada.
Basta somar "dados científicos" à máquina gestora do estado e do mercado constrangendo o comportamento com leis, impostos e produtos. E, finalmente, somemos os "Kommandos" (os ativistas) que denunciarão os "poluidores" à gestão da pureza.
Aliás, um parêntesis: os nazistas devem estar festejando a proposta de alguns ativistas antissemitas (sim, eu disse "antissemita", só tolinhos creem na diferença entre antissemita e antissionista) de boicotar a "cultura israelense". Sei que vão dizer que "cultura israelense" não é a mesma coisa que "cultura judaica", mas só os mesmos tolinhos creem nesta diferença.
Os "não sustentáveis" serão a bola da vez. Temo que um dia esses fascistas verdes chegarão a conclusão que (como diz um amigo meu bem esquisito) o canibalismo é a forma mais sustentável de viver.
Afinal de contas, qualquer coisa que comamos, estaremos ferindo criaturas com "direitos". Provavelmente advogados verdes defenderão as vacas contra a opressão que sofrem dos carnívoros. Em seguida, será a vez das alfaces terem direitos.
O canibalismo verde pode ser a solução: a pior espécie (os humanos) que já pisou no planeta comerá a si mesma, num ritual macabro de autopurificação em nome da sustentabilidade total.
Por último, tenho uma confissão a fazer. No último final de semana cometi um ato desesperado contra o fascismo verde. Foi apenas um pequeno ato singelo que desaparecerá no oceano dos dias por vir. Queimei com meu charuto uma maldita mosca que voava sobre mim. Minha culpa, minha máxima culpa... Será que já existe alguma ONG denominada "Free Flies" (Moscas Livres)?

Folha de S. Paulo (14 de junho de 2010)
Web Analytics