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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Castigos físicos - Contardo Calligaris


UMA RECENTE pesquisa Datafolha (Folha, 26/7) mostra que, no Brasil, 69% das mães e 44% dos pais admitem ter batido nos filhos.
Parêntese. Os pais são tão violentos quanto as mães: simplesmente, eles passam menos tempo em casa e lidam menos com o "adestramento" dos filhos.
A pesquisa constata também que 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças. Como se explica, então, o fato de que 54% dos brasileiros se declaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos físicos em crianças? Há várias hipóteses possíveis.
1) Talvez quem apanhou quando criança não queira perder o direito de se vingar em cima dos filhos.
2) Talvez não aceitemos a ideia de que os nossos pais tinham sobre nós uma autoridade maior do que a que nós temos ou teremos sobre nossos filhos.
3) Na mesma linha, talvez estejamos dispostos a apanhar dos superiores sob a condição de sermos autorizados a bater nos subalternos.
Nota: aceitar apanhar dos mais poderosos para poder bater nos mais fracos é a caraterística que resume a personalidade burocrático-autoritária do funcionário fascista.
4) A autoridade, dizem alguns com razão, sempre tem um pé na coação e recorre à força quando seu prestígio não for suficiente para ela se impor. Hoje, a autoridade simbólica dos adultos é cada vez menor. É provável que os próprios adultos sejam responsáveis por isso (principalmente, por eles se comportarem cada vez mais como crianças); tanto faz, o que importa é que o prestígio dos adultos não lhes garante mais respeito e obediência. Portanto, a palavra aos tabefes.
É um erro: o castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é apenas a força. A reação mais sensata da criança será: tente de novo quando eu estiver com 15 anos e 1,80 m de altura.
Esses e outros argumentos a favor da palmatória não encontram minha simpatia. Até porque verifico que os rastos desses castigos não são bonitos. Mesmo um simples tapa é facilmente traumático tanto para o pai que bateu como para o filho: ele paira na memória de ambos como uma traição amorosa que não pode ser falada por ser demasiado humilhante (para os dois). Há pais violentos que passam a vida na culpa, e há crianças cuja vida erótica adulta será organizada pela tentativa de encontrar algum sinal de amor no sadismo dos pais.
Apesar disso, se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente eu teria me declarado contra a nova lei, por duas razões.
A primeira (e menos relevante) é que existem violências contra crianças piores do que a violência física, e receio que uma lei reprimindo o castigo físico nos leve a pensar que, por assim dizer, "o que não bate engorda". Infelizmente, não é preciso bater para trucidar uma criança.
A segunda razão (e mais relevante) é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder absoluto sobre o corpo dos filhos. Mesmo sem a nova lei, o professor que visse sinais de violência no corpo de um dos alunos avisaria à polícia e à autoridade judiciária. O mesmo valeria para o pediatra ou para o psicoterapeuta. Inversamente, um pai cujo filho fosse batido na escola processaria o professor e a instituição. Também, com um pouco de sorte, uma criança batida pode denunciar o adulto que a abusa.
Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral?
Essas leis me parecem ter sobretudo a intenção de afirmar, demonstrar e estender o poder do Estado na vida dos cidadãos.
Uma coisa aprendi com Michel Foucault: o poder moderno é raramente extravagante em suas exigências. Como ele não tem conteúdo específico, mas gosta apenas de se expandir, ele escolhe o caminho mais fácil, conquistando a adesão "espontânea" de seus sujeitos. Como? Simples: operando "obviamente" "pelo bem dos cidadãos" -no caso, pelo bem das crianças.
Resumindo:
1) sou absolutamente contra qualquer castigo físico; 2) sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais.

Folha de S. Paulo (05 de agosto de 2010)

A gula republicana - Luiz Felipe Pondé


ELA PROVAVELMENTE estudou serviço social ou direito. Ele, psicologia ou pedagogia ou mesmo ciências sociais. Ambos têm certeza de que devem "melhorar o mundo" através da criação de leis ou políticas públicas. Querem criar o cidadão ideal. O que é isso? Sei lá, alguém que vá ao banheiro com consciência social?
Conhece alguém assim? Eles estão em toda parte, como uma praga querendo domar a vida a qualquer custo. E vão mandar em você logo.
Não se trata de uma questão apenas para alguém que tem simpatias por formas de vida menos controlada, como eu. Alguém que fuma charutos cubanos e acha que terapia de shopping faz bem mesmo (quem diz o contrário é mentiroso ou não tem dinheiro). Eu sei que o efeito dessas terapias passa rápido, mas, afinal, o que passa rápido mesmo é a vida.
O controle legal da vida, grosso modo, separa dois modos de ver a política desde o século 18. Um primeiro modo, "mais" britânico, tende a ser mais cauteloso em relação às formas políticas e legais de controle da vida moral (hábitos e costumes). Outro, mais descendente da revolução francesa, tende a babar de tesão só em pensar no controle dos hábitos e dos costumes, devastando a diversidade moral do mundo, como na proibição do véu islâmico na França.
No Brasil, temos um déficit sério em nossa formação. Quase todo mundo só conhece os franceses utópicos ou os alemães hegelianos (todos jacobinos de espírito), o que empobrece o debate público. Essa pobreza não se limita ao senso comum, mas, desgraçadamente, atinge a própria academia que repete cegamente a liturgia da gula republicana: controlemos a vida em nome de uma vida perfeita.
Mas o que é a gula republicana? A democracia republicana tende a devorar o espaço moral. Ela o faz porque vê o espaço moral como matéria da "coisa pública" e, por isso, assume os hábitos e costumes das pessoas como devendo ser, por natureza, objeto sob seu controle. É marca da democracia republicana o "poder minutal" (dizia Tocqueville, francês que pensava como britânico): sua natureza é buscar controlar os detalhes da vida.
Quais detalhes? Legislar afetos, hábitos, sentidos, sexo, relações parentais íntimas, comida, escolas, memória, nada escapa da gula republicana e seu clero. Leis que querem fazer de pais e filhos delatores uns dos outros, de amantes representantes do "sindicato dos gêneros". Erra quem ainda associa o fenômeno totalitário às formas clássicas do fascismo do século 20, o novo totalitarismo está associado à inflação da ideia de "bem público".
Se você der uma palmadinha no filho, o Estado te pega! Quem vai denunciar? Que tal ensinar às crianças nas escolas alguns métodos de denúncia? A família já vai mal mesmo.
Onde estaria a fronteira desta inflação da noção de "bem público"? Vamos ver... ah, já sei: não existe fronteira! Quer ver? Imagine só: está proibido rezar antes de jantar em nome da liberdade religiosa das crianças, está proibido contar historinhas paras as crianças sem antes uma análise prévia por especialistas da questão da violência de gênero, pais que não tiverem o certificado de "alimentação zero gordura e zero açúcar" pagarão multa.
Dirá o leitor ingênuo: mas a opinião pública é contra a lei das palmadinhas. Sinto muito: a opinião pública é uma "vadia". Hoje ela diz "não", amanhã ela dirá "sim", tudo depende do que for repetido cem vezes. A democracia sofre com esse mal: sua natureza tende fatalmente para a mentira, para a retórica, para a superficialidade.
Para preservar a democracia de seu viés tirânico (a gula republicana), temos que "defender" a família e suas mazelas em seu espaço (in)feliz, deixar que o manto sombrio da incerteza cubra parte de nosso cotidiano porque, o que preserva a liberdade, não é o consenso acerca do que sejam os "bens morais", mas a sombra que os cerca.
Para preservarmos esta "sombra", é necessário opções à tendência hegemônica no Brasil hoje, que é autoritária. Veja as "opções presidenciáveis". Todos são do clero jacobino de alguma forma. Todos veem a política como "curadora" das almas. Socorro!

Folha de S. Paulo (02 de agosto de 2010)
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