segunda-feira, 31 de maio de 2010

Heloisa - Luiz Felipe Pondé


MUITAS LEITORAS me perguntam se acredito no amor romântico. Sim, e vou dizer como. Adianto uma diferença: uma coisa é o amor no sentido do que dá "liga" no convívio de longa duração e outra coisa é o amor romântico (pathos), e os dois não são "parentes".
O amor no sentido de "liga" é cristão: doação, esforço cotidiano, construção de vínculos. O amor romântico é da ordem da tragédia.
Não farei uso de nenhuma pretensa sociologia do amor ou história do beijo. Essa afetação científica não me interessa. A minha descrença nas ciências humanas está além da possibilidade de cura. Parafraseando Pascal (séc. 17), quando se refere a Descartes (séc. 17): acho as ciências humanas incertas e inúteis.
Tampouco sofro da afetação das neurociências. Aqui, o amor seria apenas uma sopa com mais ou menos serotonina. Pouco me importa qual lado do cérebro acende quando amo. Ambas nos levariam a conclusões do tipo: o amor romântico seria uma invenção a serviço da ideologia burguesa e patriarcal ou alguma miserável conjunção de neurônios, como num tipo de demência senil.
Falo como medieval extemporâneo que sou. Acho a literatura medieval melhor para falar do amor romântico (como achava o mexicano Otavio Paz). Em matéria de ser humano, confio mais nos medievais do que nos homens modernos.
Segundo André Capelão (séc. 12) em seu "Tratado do Amor Cortês", o amor é uma doença que acomete o pensamento de uma pessoa e a torna obcecada por outra pessoa, criando um vício incontrolável que busca penetrar em todos os mistérios da pessoa amada: suas formas, seu corpo, seus hábitos.
Trata-se de um anseio desmedido, uma visão perturbada que invade o coração dos infelizes. Tornam-se ineficazes e dispersos. Esses infelizes deliram em abraçar, conversar, beijar e deitar-se com o ser amado, mas jamais conseguem fazê-lo plenamente (por várias razões), e essa impossibilidade é essencial na dinâmica do desejo perturbado. Corpo e alma estremecem anunciando a febre da distância.
O amor romântico é uma doença. Nada tem a ver com felicidade. Por isso sua tendência a destruir o cotidiano, estremecendo-o.
Ou o cotidiano o submeterá ao serviço das instituições sociais como família, casamento e herança patrimonial, matando-o.
Por isso, os medievais diziam que o amor não sobrevive ao cotidiano. O cotidiano respira banalidade e aspira à segurança (irmã gêmea da monotonia, mas que a teme ferozmente), e a paixão se move em sobressaltos e abismos. Uma pessoa afetada pela paixão não pensa bem.
Nem todo mundo sofrerá da "maldição de amor", como diziam os medievais. Muita gente morre sem saber o que é essa doença.
Um dos males da época brega em que vivemos é achar que todo mundo seja capaz de amar como se este fora um direito do cidadão. Com a idade e o estrago que o cotidiano faz sobre nossas vidas e suas demandas de acomodação dos afetos (e a instrumentalização a serviço do sucesso material), a tendência é nos tornarmos imunes ao "vírus".
O século 12 conheceu a triste história do filósofo Abelardo e sua amada Heloisa. As semelhanças dessa história com os contos de amor cortês como Tristão e Isolda ou Lancelot e Guinevere é grande. Nesses contos, há sempre um impeditivo ético à paixão.
Um dos amantes é sempre casado com alguém virtuoso ou um porá em risco a vida do outro devido ao ódio ou a inveja de um terceiro (por isso, se forem virtuosos, devem abrir mão do amor). O desejo se despedaça contra o fogo da virtude, mas não morre, apenas arde em agonia.
Daí a grande sacada dos medievais: quando desejo e virtude se contrapõe, a "maldição de amor" assalta a alma. Sentir-se pecador (e por isso não merecedor da beleza do amor) destrói a alegria, atiça o desejo e piora a doença. A melhor rota é fugir do amor, porque uma vez ele instalado, a regra é a dor.
Abelardo morreu castrado pelo tio da Heloisa. Ela, triste, foi trancada num convento. Na idade média, a Igreja recebeu muitas mulheres desesperadas, vítimas dessa doença, muitas vezes, fatal. Como diz o livro Cântico dos Cânticos na Bíblia, texto inspirador da literatura cortês: "Não despertem o amor de seu sono..., pois ele é um inferno".

Folha de S. Paulo (31 de maio de 2010)

Sem título - Laerte

Folha de S. Paulo (26 de maio de 2010).

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A coragem do amor que dura - Contardo Calligaris


PROLONGANDO MINHAS observações da semana passada sobre "Quincas Berro d'Água", vários leitores e leitoras observaram que a literatura e o cinema, em geral, glorificam a coragem de quem, um belo dia, chuta o balde e vai embora.
E como ficam os que passam a vida inteira deslocando o balde para estancar as goteiras? Será que eles são todos covardes e acomodados?
É inegável: nossa cultura idealiza a ruptura, a aventura, a saída para o mar aberto. Em matéria amorosa, o momento que preferimos contar é a hora do apaixonamento.
Depois disso, gostamos de imaginar que "eles viveram felizes para sempre", mas sem entrar em detalhes que poderiam transformar a história numa farsa.
Uma boa solução, aliás, é que os amantes morram logo. O sumiço (de ambos ou de um dos dois) evita que a comédia da vida que levariam juntos contamine a apoteose do encontro inicial. Os amantes ideais são os que não duraram no tempo: Romeu e Julieta, o jovem Werther e Charlotte, Tristão e Isolda.
Concluir o quê? Que a coragem é sempre a de quem deixa a mornidão de seu conforto para se queimar num instante de paixão? Será que não pode haver coragem nos esforços para que o amor dure?
É óbvio que a duração não é um valor em si: uma relação pode durar a vida inteira e ser uma longa e insulsa experiência repetitiva, sem amor algum. Mas, inversamente, será que as paixões-relâmpago são amores? Enfim, seria útil dispor de uma definição do amor.
Justamente, li nestes dias um livro que me tocou, "Éloge de l'Amour" (elogio do amor, Flammarion 2009, ainda não traduzido para o português), de Alain Badiou; é a transcrição de uma breve entrevista do filósofo francês.
Nela, inevitavelmente, Badiou constata que, em nossa cultura, a visão dominante do amor é a de uma espécie de "heroísmo da fusão" dos amantes, que, uma vez consumidos por sua paixão, podem sair de cena (para não se tornar ridículos) ou sair do mundo e morrer (para se tornar sublimes).
Contra essa visão, Badiou define o amor mais como um percurso do que como um acontecimento: segundo ele, o amor precisa durar um tempo porque é "uma construção".
Confesso que fiquei com medo de que o filósofo nos propusesse amores tagarelas, em que os amantes não parariam de discutir a relação (claro, para construí-la). Por sorte, não se trata disso. Então, o que constroem os amantes?
Geralmente, explica Badiou, minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela.
Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses.
Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela.
Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego.
O amor segundo Badiou, em suma, é uma aventura, mas que precisa ser obstinada: "Abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é uma desfiguração do amor. Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem".
Você aprecia a definição, mas a acha um pouco abstrata? Gostaria da história de um amor que dura e se obstina sem se tornar pesadelo ou farsa? Pois bem, acabo de ler um texto comovedor, bonito e capaz de ilustrar e explicar perfeitamente as palavras de Badiou.
Em "Amar o Que É: Um Casamento Transformado" (Objetiva), Alix Kates Shulman conta como ela e Scott, o marido, reinventaram o mundo, a dois, obstinadamente, depois de um acidente que precipitou Scott numa forma de demência.
Há momentos difíceis, sacrifícios e durezas, mas, curiosamente, o relato não chega nunca a ser triste porque se trata de uma extraordinária história de amor.

Folha de S. Paulo (27 de maio de 2010)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Os olhos do macaco - Luiz Felipe Pondé


VOCÊ JÁ OLHOU nos olhos de um chimpanzé? Da próxima que for a um zoológico, faça isso. Você perceberá que ali existe uma alma presa como a sua. Seus olhos carregam um misto de espanto e tristeza que só humanos conhecem, que parece brotar de excesso de sensibilidade.
Sim, simpatizo com o darwinismo. Mas nem por isso sou ateu. Tampouco tem razão o grande filósofo Daniel Dennett, cujos livros devoro e a quem admiro na sua luta para combater a velha covardia humana travestida de fé, quando supõe que qualquer relação entre darwinismo e tradição monoteísta ocidental implica medo do ateísmo.
Não tento "casar" o darwinismo com qualquer "prova" da existência de Deus. Provar a existência de Deus me dá sono, nem acho possível prová- la. Como não levo a razão tão a sério, não temo suas incoerências.
Pelo contrário, minha simpatia está sempre contra as certezas da razão. Penso, sim, que não há nenhuma grande coerência na vida, nem uma narrativa única. Uma vida dilacerada entre narrativas contrárias me parece sempre mais sólida.
O conforto da certeza me entedia. Sou da velha escola: o sofrimento é que molda o caráter.
O darwinismo me comove, assim como Shakespeare. Quando ouço Macbeth dizer "a vida é um conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada", eu penso na luta cega de nossos ancestrais cuja humanidade foi cozida em sangue. E isso me comove.
Converti-me ao darwinismo desde criança, ao ver aqueles desenhos nos quais imagens de hominídeos vão paulatinamente virando imagens de homens.
Mais tarde, quando não era não mais criança, convenci-me da verdade do darwinismo quando me vi diante das análises do comportamento humano produzidas pela psicologia evolucionista.
Não creio nas teorias que afirmam a construção social dos comportamentos, apesar de que algum grau de influência social em nosso comportamento obviamente existe.
Prefiro a ideia de comportamento como destino, maldição. Mas minha relação com o darwinismo sempre foi mais estética do que um mero convencimento racional.
O que primeiro me cativou no darwinismo foi a descrição da origem do ser humano como uma saga contra um meio ambiente terrível e contra os horrores de nossa própria "alma" pré-humana.
A solidão dos nossos ancestrais combatendo os elementos externos e internos me parece uma ode à beleza humana, arrancada da indiferença das pedras.
A escuridão e a solidão do universo me encantam. Pensar que homens e mulheres são areia que um dia tomou consciência de si mesma e de sua solidão me parece um épico que canta nossa dignidade visceral.
A dignidade que só cabe aos desgraçados. Reconheço essa dignidade nos olhos do macaco: a dignidade da testemunha assombrada.
O horror de nosso passado, para mim, sempre foi motivo de orgulho. Sim, vejo o darwinismo como um drama cósmico do qual temos o privilégio de ser testemunhas assombradas. Sim, repito, a humanidade dos humanos foi cozida em sangue, uma pérola numa imensa massa cega de matéria.
Os ateus não deixam de ter razão quando apontam o pânico que muitas pessoas têm diante de descrições da vida como a darwinista. O filósofo Nietzsche (século 19) chama esse pânico de ressentimento. Daí nasceriam as bobagens platônicas e cristãs acerca de um outro mundo onde não haveria sofrimento.
Mas o ressentimento de gente como Platão ou cristãos não é nada se comparado ao ridículo de algumas crenças atuais,mas que respondem ao mesmo pânico.
Por exemplo, pensemos na crença em "energias". Que os deuses me protejam de cair um dia no ridículo de "acreditar em energias". Odeio a palavra "energia". Energia isso, energia aquilo, hoje em dia qualquer um usa a palavra "energia" para seus delírios religiosos de consumo.
Digo sempre: quer uma religião? Procure uma de, no mínimo mil anos de existência, e preferivelmente que não tenha passado pela Califórnia ou pela física quântica.
Seu sofá está sobre um cano de água? Humm, más energias. Você tem um câncer? Precisa "limpar" as más energias. O tratamento energético não te curou? Ahhh, você não estava preparado, precisa abrir sua mente. Ovos têm energia, alfaces têm energia, o azul da parede tem energia. As energias vão resolver o conflito israelo-palestino. As energias vão parar teu envelhecimento.

Folha de S. Paulo (24 de maio de 2010)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Carpe diem, aproveite o momento - Contardo Calligaris

ESTREIA AMANHÃ , Brasil afora, "Quincas Berro d'Água", de Sérgio Machado, inspirado num dos romances mais bonitos (e mais lidos) de Jorge Amado, "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".
O filme é uma daquelas raríssimas obras que nos fazem rir e sorrir da vida, do mundo e de nós mesmos, enquanto, justamente, pensamos seriamente na vida, no mundo e em nós mesmos.
Esse milagre deve ser efeito do roteiro (do próprio Machado) e da atuação de um conjunto de atores que todos mereceriam ser mencionados, a começar por Paulo José, que é Quincas, vivo e morto (e não pense que encarnar um morto seja tarefa fácil).
Agora, nesse grupo extraordinário, quem rouba a cena é Mariana Ximenes, no papel de Vanda, a filha que Quincas abandonou quando deixou sua vida de funcionário "respeitável" e caiu na farra. Quase sem palavras, com delicadas e progressivas mudanças de seu olhar, Ximenes nos conta, de maneira inesquecível, o despertar nela dos genes paternos.
Enfim, meu jeito de agradecer à equipe que nos oferece esse filme foi anotar algumas reflexões que ele suscitou em mim.
1) Quase sempre, quando sonhamos em mudar de vida radicalmente, enxergamos esse ato como a conquista de uma alforria: seremos livres -dos pais ou, então, da mulher ou do marido que nos aprisionam. De fato, às vezes, os outros nos controlam e nos impedem de viver, mas não é frequente.
Em geral, nós os acusamos pela mesmice de nossa vida ("se nos livrássemos desses tiranos, poderíamos viver plenamente"), mas a tirania que nos oprime é a de nossa inércia e de nossa covardia.
2) Às vezes, num casal, as exigências triviais do parceiro são intoleráveis por parecerem absolutamente insignificantes: tire os pés da mesa, não espalhe o jornal pelo chão da sala nem a roupa pelo chão do quarto. Indignação: a morte nos espreita, e eis que alguém se preocupa com as migalhas que podem cair no sofá.
Como teria dito Sêneca, nós nascemos para coisas grandes demais para continuarmos escravos dessas picuinhas, não é?
Problema: uma vez chutado o pau da barraca, quem garante que a "grandeza" para a qual nascemos não se resuma em comer livremente amendoins na cama?
3) Quincas tem razão: só teme a morte quem não se permitiu viver, ou seja, quem viveu plenamente não tem medo de morrer.
Mas o que é uma vida plena? Será que é a vida de Quincas? A bebida e os amores? A fuga das responsabilidades domésticas?
Talvez o valor da farra de Quincas esteja, sobretudo, na liberdade de viver sem se importar com o julgamento dos outros, com a boa reputação. Para aproveitar a vida, antes de mais nada, não se preocupe com o olhar reprovador dos demais.
4) Reli a ode 1.11 de Horácio, onde está o famoso "carpe diem" (colha o dia). Horácio sugere que não apostemos nossas fichas no futuro, mas nos preocupemos com o agora, com o hoje.
Tudo bem, mas será que viver como se não houvesse amanhã significa necessariamente perder-se (ou encontrar-se) nos prazeres imediatos da carne? Não é nada óbvio. Um cristão poderia concordar com Horácio, entendendo o "carpe diem" assim: é preciso estar em paz com Deus hoje, agora, não amanhã.
5) Então, o que é viver plenamente: gozar, rezar, meditar, cultivar-se?
Talvez seja possível responder sem tomar partido.
Eis uma anedota da qual Quincas teria gostado. O rei da Itália, Vittorio Emanuele 2º, passeava a cavalo pelo campo de seu Piemonte nativo.
Chegou à fazendola de um camponês, que fez grande festa e o convidou à mesa.
Vittorio Emanuele elogiou o vinho do camponês, o qual comentou: "Isto não é nada. Sua Majestade deveria experimentar o de três anos atrás". O rei replicou: "E esse vinho de três anos atrás acabou?". "Não acabou, Majestade", respondeu o homem, "mas a gente guarda o que sobrou para as grandes ocasiões".
Pois é, quando Mefisto comprou a alma de Faust, ele impôs a seguinte condição: Faust viveria até o dia em que, diante da beleza do que ele estaria vivenciando, fosse levado a pedir que o átimo parasse. Quando isso acontecesse, ele morreria, seu tempo acabaria.
Há várias interpretações dessa passagem do "Faust", de Goethe (1, 699-706); uma delas é que Faust só poderia morrer uma vez que ele descobrisse o segredo da vida. E esse segredo é que, para viver plenamente, é preciso reconhecer que, com ou sem o rei sentado à mesa, com farra ou sem farra, na alegria ou na tristeza, cada momento presente é sempre uma grande ocasião.

Folha de S. Paulo (20 de maio de 2010)

quarta-feira, 19 de maio de 2010

O canibalismo é relativo - João Pereira Coutinho


Li com interesse a "gaffe" do premiê da Nova Zelândia. Relembro os pormenores: o governo do país mantém negociações com as tribos indígenas para devolver territórios que esses povos consideram sagrados
Foi nesse contexto que o premiê John Key resolveu fazer uma piada, confessando-se aliviado por não ter que jantar com os povos Maori. "Se eu fosse jantar com eles", afirmou Key, "o mais provável era ser eu a refeição
Ri com o comentário: hoje em dia, é muito difícil encontrar boas piadas sobre canibais. Mas depois reparei que o mundo não ria: os Maori, disseram especialistas diversos, deixaram de comer gente há duzentos anos. E a opinião de Key foi, no mínimo, "insensata"
Fiquei em silêncio, acabrunhado com a minha insensatez perante a insensatez do premiê. E então percebi como são estreitos os limites do relativismo
Todas as culturas devem ser avaliadas apenas pelos seus valores internos? Eis o credo do relativismo cultural, que rapidamente desagua numa forma extrema de relativismo moral: se todas as culturas apresentam valores distintos, não existe um padrão externo e universal a essas culturas capaz de as avaliar, condenar ou hierarquizar
O próprio Montaigne, aliás, em ensaio clássico sobre o canibalismo, alertava: quem disse que os indígenas do Brasil são "selvagens" e "incivilizados"? Essas opiniões são apenas preconceitos que reduzem a diversidade do mundo a um único padrão explicativo. E nem mesmo o canibalismo horrorizava Montaigne, desde que o material das refeições (normalmente, meus antepassados portugueses) já estivesse morto no momento do espeto
Respeito Montaigne. Mas gostaria que os discípulos do francês respeitassem até o fim o credo que eles próprios professam, o que raramente acontece. Quando um relativista discute o Ocidente e a sua história, ele não hesita em fazer juízos de valor que estão interditos, por exemplo, em relação aos zulus; ou aos aborígenes australianos; ou aos índios brasileiros. Os zulus, os aborígenes e os índios devem ser compreendidos na sua singularidade, mas nunca condenados. O Ocidente não deve ser compreendido; apenas condenado
Existe aqui um erro conceptual da maior importância. Porque se nenhuma cultura pode ser avaliada externa e objetivamente por um padrão universal, então não existe qualquer legitimidade para avaliar ou condenar aquela região do globo que se convencionou chamar de "Ocidente". Condenar o imperialismo do Ocidente, por exemplo, e mesmo as suas práticas mais desumanas (como a escravatura) será tão abusivo como condenar o canibalismo dos índios. Ou dos Maori
Se as patrulhas exigem silêncio ao premiê da Nova Zelândia sobre a história canibal de terceiros, seria bom que pensassem duas vezes antes de fazerem ruído sobre a história e as práticas das "tribos" do Ocidente. Quando tudo é relativo, tudo é perdoado

Folha Online (18 de maio de 2010)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Misericórdia - Luiz Felipe Pondé


É COMUM se dizer, sobre o filósofo Kant (1724 - 1804), que duas coisas o encantavam: no universo, a lei da gravidade e, no mundo, a lei moral. Para mim, duas coisas me assombram: no universo, a solidão dos elementos e, no mundo, a misericórdia.
Não me refiro à falsa misericórdia, aquela que mais é uma alegria mesquinha que sentimos diante da miséria alheia e que é, na realidade, uma espécie de gozo infame a serviço dos recantos mais obscuros de nossa frágil alma.
Perdão, mas hoje vou falar de cabala (a mística medieval judaica). Digo "perdão" porque, hoje em dia, ela está na moda.
"Meu Deus, como amo a moda", dizia a madame de Sévigné, em agonia. Deve-se evitar a moda. Infelizmente, "ensina-se" cabala por aí como se fora ela uma forma de escravizar Deus e o universo aos nossos desejos mesquinhos de sucesso. Cara leitora mística, atenção: se alguém se disser "professor de Cabala", cuidado! Antes de pagar as aulas, cheque se ele tem um profundo conhecimento de hebraico (não basta ser fluente na língua). Se não for o caso desista.
Se quiser escravizar o universo aos seus mesquinhos desejos de sucesso, restrinja-se a alguma técnica energética barata. Deve haver uns dez caras no mundo que entendem de cabala e nenhum deles mora na Vila Madalena ou atende via web.
Um dos "galhos" da árvore da cabala é chamado "Hod", que é traduzido por especialistas em história da cabala como "agradecimento".
É nisso que penso quando lembro que respiro, que minha mulher e meus filhos respiram, que meus (poucos) amigos respiram e, às vezes, sorriem.
Muitos teólogos sejam judeus, sejam muçulmanos ou sejam cristãos afirmam que a única teologia verdadeira é aquela que agradece. O leitor pergunta: "Mas este colunista deve ser bipolar. Como pode escrever hoje isto, se, nas semanas passadas, parecia habitado pelo demônio da crítica triste do mundo?".
Fácil responder essa. Não tenho diagnóstico de bipolaridade, mas quase sempre sou mesmo um crítico triste do mundo.
Conheço melhor a tristeza do demônio do que a beleza do mundo (acalme-se, leitor, uso a palavra "demônio" como metáfora) e, por isso, é que me sinto parte da humanidade.
Os humores variam, como as águas de um mar que responde a fúria da fortuna. Pela tradição judaica, Davi é o especialista na maior virtude hebraica antiga: a humildade. Em seus belos Salmos, ele canta a beleza de Deus e Sua misericórdia que escorre do Céu.
Muitos localizam esta misericórdia na mesma "árvore", como sendo "Hesed" (as vezes também traduzida como "piedade"). Davi respira essa misericórdia, por isso ele é considerado o "preferido de Deus".
Comentários rabínicos ao primeiro livro da Torá, "Bereshit" (na tradição cristã, Gênesis), contam uma história interessante sobre a relação entre a Justiça, a Verdade e a Misericórdia na origem da Criação.
Faço aqui a minha versão preferida dessa tradição: para mim a Verdade de Deus é Sua misericórdia. Estava Deus prestes a criar o homem e a mulher quando foi assolado por dúvidas terríveis. Chamou então alguns de seus assessores, a Justiça (próxima à ideia de julgamento ou "Din", outro atributo divino na cabala) e a Misericórdia.
Pergunta Deus a eles se valeria a pena criar o homem e a mulher, levando-se em conta o que nós faríamos (o pecado). A Justiça se coloca contra a empreitada dizendo que nós não valemos o "investimento".
Somos mentirosos, infiéis e orgulhosos. Seu voto seria contra. Já a Misericórdia vota a nosso favor. Diz que, mesmo sendo como somos, daríamos grande alegria a Deus nos poucos momentos em que seriamos capazes de ver, em meio à impenetrabilidade assustadora do nosso orgulho, Sua beleza.
Deus pensa e decide a nosso favor.
Todavia, talvez como forma de castigar a Misericórdia, que O convenceu a nos criar, Ele a despedaça contra o chão e a dispersa pelo mundo.
Assim sendo, ficamos submetidos, desde o alto, à desconfiança eterna da Justiça divina, ao mesmo tempo em que desesperados, arrastando pelo chão, buscamos os cacos da Misericórdia (ou da Verdade) que habita os recantos distantes do mundo e os detalhes infinitos da vida.
Por isso, dirão os sábios, Deus está no detalhe. Felizes aqueles que conseguem ainda contemplar a delicadeza desses detalhes. Toda vez que vejo a Misericórdia no gesto de alguém, me calo.

Folha de S. Paulo (17 de maio de 2010)

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Adoção por casais homossexuais - Contardo Calligaris


NA SEMANA retrasada, por unanimidade, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que casais homossexuais têm o direito de adotar.
Claro, duas mulheres ou dois homens já podiam criar juntos uma criança adotada por um dos membros do casal. Agora, eles poderão compartilhar legalmente a responsabilidade da adoção.
O ministro João Otávio de Noronha declarou que a decisão do tribunal foi guiada pelo princípio de atender ao interesse do menor. No debate a favor ou contra a adoção de crianças por casais homossexuais, todos afirmam, aliás, opinar e agir no interesse dos menores.
A primeira questão nesse debate, portanto, é a seguinte: crianças criadas e educadas por um casal homossexual (feminino ou masculino) sofrem de dificuldades específicas?
Seu desenvolvimento afetivo, intelectual e sexual é diferente do das crianças de casais heterossexuais?
Como disse, faz décadas que, mundo afora, casais homossexuais já criam filhos, naturais e adotivos. E faz décadas que psicólogos, médicos e assistentes sociais pesquisam esses casais e seus rebentos.
O resultado é inequívoco e aparece num documento de 2007, endereçado à Corte Suprema da Califórnia pela American Psychological Association, a American Psychiatric Association e a National Association of Social Workers, ou seja, pelas três grandes associações dos profissionais da saúde mental dos Estados Unidos (psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais).
Esse texto, de 72 páginas, apresentando uma ampla bibliografia de pesquisas, afirma que "homens gay e lésbicas formam relações estáveis e com compromisso recíproco, que são essencialmente equivalentes a relações heterossexuais" (III, A), e que "não existe base científica para concluir que pais homossexuais sejam, em qualquer medida, menos preparados ou capazes do que pais heterossexuais ou que as crianças de pais homossexuais sejam, em qualquer medida, menos psicologicamente saudáveis ou menos bem adaptadas" (IV, B).
Ora, tramitam na Câmara dos Deputados dois projetos contra a decisão do Superior Tribunal de Justiça, um do deputado evangélico Zequinha Marinho (PSC-PA) e outro do deputado Olavo Calheiros (PMDB-AL). Visto que não dá mais para dizer que pais homossexuais sejam nocivos para suas crianças, os projetos se preocupam com o constrangimento das crianças diante dos colegas. Na escola, vão zombar de filho de homossexual. Para evitar esse vexame, melhor proibir a adoção por casais homossexuais.
Pois é, na mesma escola, também vão zombar de negros e de pobres.
Vamos impedir negro e pobre de ter filhos? O cômico é que, no Brasil, o filho de homossexual pode ser objeto de zombaria, mas essa zombaria não se compara com o que pode acontecer com filho de deputado.
Esperando que a reputação da classe política melhore e sentindo sinceramente pelos deputados honestos, no espírito dos projetos Marinho e Calheiros, acho bom proibir também a adoção de crianças por deputados federais e estaduais.
Brincadeira à parte, na nossa cultura, a condição básica de uma educação que não seja demasiado danosa é: os pais não devem querer que os filhos sejam seus clones.
Quando desejamos que nossos filhos sejam a cópia da gente, é para encarregá-los de compensar nossas frustrações: quero um filho igual a mim para que tenha o sucesso que eu não tive ou para que viva segundo regras que eu proclamo, mas nunca consegui observar. Pois bem, para criar e educar no interesse dos menores, é necessário fazer o luto dessas esperanças, que tornam as crianças escravas de nossos devaneios narcisistas.
Agora, a percentagem de homossexuais entre os filhos de casais homossexuais é igual à da média da população, se não menor. Ou seja, aparentemente, os homossexuais não têm a ambição de ver seus filhos se engajar na mesma "preferência" sexual que lhes coube na vida.
Em compensação, quem gosta mesmo de filho-clone são todos os fundamentalistas. É quase uma definição, aliás: fundamentalista é quem quer filhos tão fundamentalistas quanto ele.
Uma conclusão coerente seria: o interesse das crianças permite que elas sejam adotadas (e, portanto, criadas e educadas) por pais homossexuais e pede que a adoção seja proibida aos pais fundamentalistas evangélicos, por exemplo.
Serviço. Para ler o documento de 2007, acessetinyurl.com/docpsi

Folha de S. Paulo (13 de maio de 2010)


terça-feira, 11 de maio de 2010

Cabeças perdidas - João Pereira Coutinho


No dia em que os Estados Unidos sofrerem novo atentado terrorista dentro de portas, a presidência Obama estará terminada. O próprio Obama também: independentemente da reforma da saúde e do absurdo prémio Nobel da Paz, os americanos, como diria o general Patton, não toleram perdedores.
Já faltou mais. Em dezembro de 2009, um bombista suicida tentou explodir um avião da Delta-Northwest Airlines sobre Detroit. Só por inépcia falhou a detonação. Obama suspirou de alívio.
E suspirou de alívio sábado passado. Times Square é o coração de Manhattan. Sábado à noite é o coração do fim-de-semana em Manhattan, com milhares de turistas na zona dos teatros. Um carro-bomba, plantado no espaço, prometia carnificina geral. A polícia de Nova York impediu o pior. Mas até quando?
A pergunta faz sentido. Sobretudo quando Obama e a sua retórica "conciliadora" não impedem exibições de extremismo. O carro-bomba, na verdade, não estava apenas em Times Square. Estava a poucos metros dos escritórios da Viacom, a proprietária do canal onde passa o desenho animado "South Park". O mesmo desenho animado que esteve no centro de polémica conhecida.
Semanas atrás, os criadores da série, Matt Stone e Trey Parker, exibiram um episódio onde Maomé surgia com uma fantasia de urso. A ideia de Stone e Parker era retratar todos os grandes líderes religiosos. Mas Maomé não é apenas um líder religioso; é uma promessa de morte para quem se atreve a desenhá-lo. Por isso uma fantasia de urso resolveria o assunto com certa dose de humor.
Foi o que bastou para que as ameaças veladas começassem a chover sobre os criadores. E sobre a estação televisiva, que censurou o episódio. Na emissão seguinte, Stone e Parker trocavam Maomé pelo Papai Noel; depois, usavam um bipe sempre que a palavra Maomé era dita; e, finalmente, colocavam a palavra "censura" sobre as imagens.
Nada disso é novo. Trata-se apenas de uma repetição dos cartoons dinamarqueses do profeta que incendiaram a Europa e o Islã em 2005. E que deixaram uma herança fúnebre: o Ocidente, confrontado com o fanatismo islamita, não parece interessado em defender a sua tradição de secularismo e liberdade de expressão. Para amansar o fanatismo islamita, o Ocidente não hesita em negar e destruir esses valores fundamentais.
Essa atitude de apaziguamento, que ao longo da história nunca comprou respeito ou segurança, tem sido a atitude da atual administração americana. E não admira que, perante o episódio "South Park", a Casa Branca tenha enfiado a cabeça na areia quando era essencial que a mostrasse ao mundo.
Um erro. Quem esconde sempre a cabeça, um dia acaba por perdê-la.

Folha Online (3 de maio de 2010)


Da grandeza e da miséria - João Pereira Coutinho


SOU UM HOMEM , nada do que é humano me é alheio. Roubo a frase a Montaigne, que a roubou ao romano Terêncio. Não é fácil cultivar essa disposição: aceitar o que é humano é aceitar tudo, não apenas os aspectos solares da nossa existência. É fácil aceitar o amor, o altruísmo, a bondade. Mais difícil é aceitar o ódio, a mesquinhez, a maldade. Mas é impossível escolher. Ou somos tudo ou somos nada.
Orlando Figes que o diga. Uma apresentação do senhor: nos últimos anos, Figes tem sido um dos meus historiadores de eleição.
Descobri-o em "A People's Tragedy" (uma tragédia das pessoas; Penguin). É a melhor história da Revolução Russa que conheço. Ou, para usar a qualificação de Figes, é a melhor história das revoluções russas (várias) que começaram em plena Primeira Guerra Mundial e se estenderam até à morte de Lênin. Em 1924, a velha Rússia estava enterrada e Stálin dispunha dos recursos necessários para tiranizar um continente inteiro. Continuei leitor de Figes em "Natasha's Dance" (dança de Natasha; Picador), uma história cultural da Rússia. Da relação intensa, por vezes patológica, dos russos com a sua "identidade" e com os meios artísticos para a expressar. Antes de Figes, os estudos de Isaiah Berlin sobre o assunto em "Russian Thinkers" (pensadores russos) eram o Everest do gênero. Figes escalou a montanha e substituiu a bandeira no cume.
Finalizo o meu namoro com "The Whisperers" (os sussurradores; Metropolitan Books), provavelmente o melhor dos três: uma história da vida privada sob o regime de Stálin. O comunismo não promoveu apenas a ruína econômica conhecida. Promoveu uma ruína moral, ou existencial, convertendo um povo à delação, ao medo e, atenção ao título, ao contínuo sussurrar dos escravos.
Figes, um super-historiador. E um super-historiador que poucas semanas atrás se viu envolvido no mais bizarro escândalo editorial em Inglaterra. Tudo porque no site da Amazon surgiam críticas aos livros de Figes que não se limitavam a elogiar Figes ("um autor fascinante", "livros assombrosos" etc.).
As críticas partiam para o assalto e o insulto sistemáticos a colegas de profissão e respectivas obras (Robert Service, o conhecido biógrafo de Lênin, Trotsky e Stálin, foi um dos visados).
O "Times Literary Supplement" levantou a dúvida: seria Figes o autor das críticas? Figes, ou um advogado por ele, ameaçou processar o jornal por difamação.
Mas com o tempo, e com novas revelações (o e-mail usado no site da Amazon denunciava o nome de família do autor anônimo), Figes mudou o tom. As críticas, afinal, eram da sua mulher, disse Figes. Ou um advogado por ele.
Só que as críticas não eram da sra.
Figes. Eram do sr. Figes. O próprio, em comunicado, assumiu finalmente a paternidade e pediu desculpas aos visados.
Os visados não queriam acreditar.
Robert Service publicou texto no "The Guardian" em que expressou repulsa e estupefação. Não condeno Service. Mas nada que seja humano lhe deveria ser estranho. E o caso Figes é, sobretudo, um painel admirável sobre a grandeza e a miséria de um homem.
É um painel sobre um reconhecido intelectual que, apesar de tudo, e de tanto, ainda tem tempo e vagar para alimentar os bichos interiores da insegurança e da inveja. Cada livro de Figes é um monumento de erudição, estilo e, já agora, gramagem. Todos eles limparam os principais prêmios da academia britânica.
E, no entanto...
E, no entanto, imagino Figes, nas horas da madrugada, batendo umas linhas de autoelogio na internet e disparando sobre colegas rivais.
Há algo de infantil e mesquinho na empreitada. E há muito de covarde, também. Duplamente covarde.
Pelo ataque anônimo aos seus pares, assim privados de se defender; e pela deliciosa tentativa de desculpas, imputando as ditas à mulher. Não fui eu. Foi a minha senhora. Desculpem-na. Ela ama-me demais. Leio essa odisseia no jornal e depois olho para a estante onde estão os livros de Figes. Que continuarei a ler e a reler, sim, embora lamentando o desperdício de tempo. Não do meu.
Mas do tempo de Figes. Quando Michel de Montaigne mandou gravar a conhecida frase de Terêncio na sua biblioteca, a intenção era evidente: a fundamental investigação que nos deve ocupar e preocupar é a investigação de nós sobre nós.
Por isso pergunto: como é possível perder anos de vida a estudar a miséria da natureza humana na Rússia quando ela existe, em quantidades generosas, dentro da nossa alma?

Folha de S. Paulo (4 de maio de 2010)

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Marketing de comportamento - Luiz Felipe Pondé


UMA FRASE típica de jantares inteligentes é: "Hoje temos outra cabeça!". Eu digo que não. Não temos "outra cabeça". Somos mais tagarelas sobre nossas mentiras. A mentira virou ciência: virou marketing.
Acho, sim, que muitos profissionais das ciências humanas afirmam que existe essa "outra cabeça" (no sentido de sermos mais bem resolvidos) simplesmente para justificar seu lugar de gurus de uma vida melhor. Pretendem seduzir as pessoas dizendo para elas palavras bonitas.
Principalmente as mulheres. Enganam-se porque as mais interessantes entre elas detestam bajulação. A praga da "autoajuda" não é privilégio de magos decadentes, bruxas loiras e gurus desdentados. Essa praga assola tudo, fazendo da vida inteligente um marketing da autoimagem.
Progredimos, sim, em remédios, repelentes de mosquitos e cirurgias (tecnologias médicas), aviões, computadores e celulares (tecnologias de transporte e comunicação). Mesmo a democracia eu julgo sobrevalorizada em muitos casos devido à inequívoca vocação para a retórica e para a tirania da opinião pública.
Mas a má-fé se esconde no fato de que todos esses avanços técnicos implicam o tipo de vida (degradada, instrumental, apressada) que temos. Como diz o filósofo francês André Comte-Sponville, o "progresso" em escala global é uma ameaça à vida.
Sem dúvida que algumas coisas "mudam". Hoje, por exemplo, muitas mulheres podem ser "mais" do que secretárias, elas podem ser médicas, engenheiras, cientistas. E negros podem ser presidentes. Mas nada disso (de antibióticos a médicas negras) implica em "outra cabeça": continuamos invejosos, manipuladores, inseguros, traiçoeiros e podemos destruir muita gente dando uma de "defensores dos mais fracos". Os "ganhos sociais" só se instalam quando se acomodam e passam a servir às velhas mazelas humanas.
Uma leitora, irritada, pergunta: "Você não acredita que existam mulheres sozinhas e bem resolvidas? Você deve é ter problemas com as mulheres". Dou duas respostas.
Primeira: não acredito em pessoas bem resolvidas, acho que todo mundo que se diz bem resolvido é um mentiroso contumaz, mulher ou homem. No fundo, o que existe hoje é um marketing de comportamento que se apoia no consumo crescente de antidepressivos e hábitos macabros como conversar com gatos, cachorros, plantas ou extraterrestres.
Só eremitas conseguem viver bem sozinhos. Amar a solidão sempre implica alguma forma de trauma ou desencanto com a vida.
Segunda: sim, tenho problema com as mulheres, quem não tem? Só os mentirosos. Vou contar uma história. No maravilhoso livro "Contraponto", de Aldous Huxley, existem duas personagens femininas, entre outras, Marjorie e Lucy. A primeira é aquele tipo clássico da mulher que se faz vítima do homem, grávida e traída. A segunda é o outro tipo clássico de mulher (e oposto à Marjorie), o ideal de toda mulher moderna: a devoradora de homens, que transa com quem quer.
Lucy, em sua vivência de mulher livre, descobre um tesouro de sabedoria: só os gays não têm problemas com as mulheres porque são indiferentes a elas. Ser bem resolvido com as mulheres é ser gay. Para o gay, a mulher é obsoleta. Exigir dos homens "afetos corretos" para com as mulheres é querer que todos sejam gays. O mesmo vale para as mulheres: toda mulher tem problema com os homens. Quando se trata da relação entre homens e mulheres, estamos num pântano de medo, insegurança, baixa autoestima e jogos de manipulação. O inferno do desejo.
Conhece?
E por que existe tanta gente que faz uso desse marketing de comportamento dizendo por aí que "hoje temos outra cabeça"? De novo, dou duas respostas.
Primeira: eu me vendo como bem resolvido para fazer os outros se sentirem mal e com isso elevo minha autoestima. Nunca subestime a delícia que é fazer o outro se sentir mal mesmo que você não esteja se sentindo tão bem assim.
Segunda: como derivação da primeira, eu me vendo como bem resolvido para elevar meu preço no mercado dos afetos e das relações.
As duas se resumem no velho pecado da vaidade. Esse é apenas um dos sete pecados capitais (caso a cara leitora queira saber mais, leia são Tomás de Aquino). Melhor do que todo o papo de luta de classes, ideologia, política dos corpos, sexismo e blá-blá-blás associados, experimente usar os sete pecados capitais para ver se eles não iluminam a chacina cotidiana em que você vive.

Folha de S. Paulo (10 de maio de 2010)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Você prefere os obedientes ou os rebeldes? - Contardo Calligaris


VOLTEI AO presídio feminino do Butantã, em São Paulo, para ser jurado de um concurso de miss atrás das grades, com três premiações: Miss Cultura, Miss Simpatia e Miss Beleza.
No concurso de beleza, a administração decidiu que seriam premiadas cinco mulheres, sem hierarquia. Foi uma ótima ideia. A eleição de uma miss sempre deixa a impressão de que exista um único cânone de beleza. De fato, as cinco mulheres premiadas eram bonitas de maneiras muito diferentes. Mas, sobre a diversidade da beleza, escreverei outro dia.
No concurso de Miss Simpatia, o júri só podia se deixar contaminar pela torcida da plateia. Afinal, simpatia é também saber conquistar amizades, muitas amizades.
Mas vamos ao concurso de Miss Cultura. Cada uma das sete finalistas produziu uma redação sobre um dos temas que tinham sido propostos pelos organizadores. Nós, do júri, recebemos as redações, lemos, ponderamos e, no dia do concurso, escutamos as candidatas lendo seu texto e, eventualmente, respondendo às nossas perguntas.
Os próprios temas levaram as mulheres a falar de seus planos de futuro, do uso que elas fizeram ou fariam do tempo de detenção, do arrependimento, da saudade etc. Com isso, era quase inevitável que as considerações das concorrentes fossem sempre muito próximas ao que a sociedade espera que um detento pense e declare. Mas, cuidado, não há crítica alguma nessa minha observação, até porque nada do que as candidatas escreveram soava fingido.
Então qual é o meu problema? Eu preferiria que as candidatas se mostrassem revoltadas e agressivas? Claro que não. No entanto, ao ler as redações, eu me preocupava, paradoxalmente, com a rebeldia das autoras, como se ela fosse uma qualidade que não poderia se perder, que, mesmo numa penitenciária, deveria ser preservada. Que loucura é essa?
Pois bem, é uma loucura absolutamente banal, uma loucura própria de nossa cultura. Se não fosse por ela, aliás, a tarefa dos pais e dos educadores seria imensamente mais fácil. Explico.
Todos queremos que filhos ou alunos respeitem nossa autoridade. Agora, todos também consideramos que nossa tarefa de pais ou educadores só será cumprida quando filhos e alunos pensarem por conta própria, ou seja, quando eles sejam capazes de desconsiderar nossos conselhos e desobedecer a nossas ordens.
Seria cômodo se, como nas sociedades tradicionais, a gente dispusesse de ritos de passagem sancionando a entrada na idade adulta: aos 15 anos e um dia, saia sozinho pela savana, armado de uma lança, e só volte tendo matado seu primeiro leão. A partir de então, você será autônomo.
Infelizmente, para nós, o tempo de se tornar adulto se estende sem limites definidos: não sabemos quando ele acaba e, mais problemático ainda, não sabemos quando começa. Consequência: pais e educadores podem sofrer, exasperados pela rebeldia de moleques e meninas incontroláveis e, ao mesmo tempo, deliciar-se ao relatar as travessuras de filhos e alunos. Qualquer terapeuta já atendeu pais "desesperados" com a insubordinação dos filhos, mas que, de repente, abrem um sorriso extasiado na hora de contar "o horror" que é sua vida com esses descendentes que os desrespeitam.
Eis o problema que torna educar quase impossível, em nossa cultura: a autonomia, para nós, é um valor tão importante que ela precisa ser confirmada pela desobediência. Com isso, qualquer pai prefere, no fundo, lidar com um filho revoltado a imaginar que o filho possa ter uma vida servil e, portanto, medíocre.
Os santos mais respeitados são os que foram grandes pecadores e descrentes (Agostinho, Francisco, o próprio Paulo etc.). No imaginário cristão, aliás, uma conversão tem mais valor do que a fé de quem sempre acreditou. A parábola do pastor que deixa o rebanho para procurar a ovelha perdida sugere que, assim como a gente, talvez Deus prefira os rebeldes.
Uma anedota. Em maio de 1969, no átrio da Universidade de Genebra, junto com amigos anarquistas, eu distribuía panfletos criticando a iminente visita do papa à cidade.
Um professor, passando por nós, perguntou-me: "Será que o senhor tem uma autorização para distribuir esses panfletos?". Respondi imediatamente: "Senhor, tenho muito mais do que uma autorização, tenho uma proibição formal".
Fato coerente com o que acabo de argumentar, ele achou engraçada minha impertinência e deixou que continuássemos.

Folha de S. Paulo (06 de maio de 2010)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Meninas fáceis - Luiz Felipe Pondé


E AÍ, leitor de 15 anos? Diga-me cá uma coisa: é verdade que as meninas hoje transam muito? Quantas já deram em cima de você, fazendo você se sentir um frouxo se "não comparecer" quando ela quiser?
Atenção terapeutas de plantão: não me venham dizer que as meninas hoje em dia "evoluíram" e que querem meninos sensíveis, porque, para elas, meninos sensíveis só são bons para tirar sarro. E que fiquem fora da cama delas. Ou seria fora do carro delas? E aí, leitora de 40 anos, você acha esse papo muito vulgar?
Sinto muito, as meninas "evoluíram" e agora são senhoras dos seus desejos e isso basicamente quer dizer: são fáceis. Quer saber? Acho uma hipocrisia ficar lamentando que as meninas estejam transando por aí. Todo esse estardalhaço com relação "as pulseiras do sexo" é puro blá-blá-blá. Se as meninas estão transando por aí, é porque dissemos a elas que isso é legal, não?
Vejamos. Mas, antes, um reparo.
Repito o que já disse: não acredito que se faça melhor sexo hoje em dia, acho sim que hoje existe muito marketing, muito papo furado, muita mulher sozinha que se veste pra si mesma num ritual macabro de vaidade e... muita gente brocha.
A chamada "revolução do desejo" serve para ganhar dinheiro com publicidade, livros de sexo chique e para aumentar a sensação, em seres humanos reais, de que todo mundo está transando menos você.
Mães de 50 anos se deliciam em vender a imagem de si mesmas como máquinas de sexo. Na realidade, no silêncio de seu quarto escuro, são umas invejosas, que queriam ser como suas filhas: mulheres fáceis.
Professoras inseguras com seus corpos cansados, atônitas com a inutilidade última de toda sua inteligência diante da chacina que é a vida cotidiana, invejam as suas alunas deliciosas que desfilam pernas e seios por aí, dançando a dança do acasalamento. Sim, deveriam tê-las avisado que a vida se repete exatamente naquilo em que ela é miserável: medo, inveja, baixa autoestima e abandono.
Cursos chiques trabalham o corpo para que ele seja fácil de manipular na cama, no carro, no banheiro.
Teorias psicológicas e filosóficas empacotam a vontade de ser fácil em papel de presente fingindo que existe mesmo uma coisa chamada "sexo revolucionário". E aí, quando os padres fazem sexo com meninos, os revolucionários de meia pataca põem o rabo entre as pernas e se escondem porque não têm coragem de enfrentar o horror do sexo "livre".
Não existe sexo livre, existe apenas sexo sem amor.
Comédias de TV idealizam mulheres urbanas que transam assim como quem corre em esteiras aeróbicas (ou seriam "anaeróbicas"?), calculando o "tamanho" de seus homens, se gabando, assim como homens boçais, da quantidade de vezes que gozam.
Músicas nas festas das escolas e nos aniversários de crianças cantam a banalidade dos gestos sexuais, fixando os olhos vazados das meninas no desejo de crescer o bastante para serem fáceis. Programas infantis ensinam a vulgaridade como forma de liberdade corporal na frente das câmeras. Programas "teens" de TV elevam ao grau de guru quem transa aos dez anos, contanto que use camisinha. Pedagogas, sob o signo de preparar para a vida, barateiam os corpos das meninas ensinando sexo fácil como se fosse sexo seguro.
Salvem as baleias, as focas, o verde, o planeta, os "baby monkeys", mas transem fácil.
A forma como o aborto é tratado (todo mundo é a favor, menos os "tolinhos") é prova de como o sexo e as meninas são artigo vendido às dúzias nas feiras de periferia. É isso aí: mulher fácil é mulher barata. Tem mais mulher do que homem no mundo (não estou seguro dessa informação, mas todo mundo diz que sim, principalmente as mulheres solitárias) e, com a liberação delas, o preço ainda caiu mais. A melhor coisa que existe para um cara que quer uma mulher barata é que ela pague suas contas.
Alguém precisa parar de mentir e avisar para essas meninas que a vida é uma chacina cotidiana. Que o envelhecimento chega sem que você espere, que o mundo fica repetitivo com o tempo, que as pessoas ficam previsíveis e que sexo fácil é sempre sexo sem amor. Avisem a elas que o amor é raro, difícil, caro, duro de encontrar, morre fácil, porque é sempre mal-adaptado num ambiente mais afeito a baratas do que a seres humanos.
Enfim, que uma das lutas contínuas da civilização é contra a indiferença porque homens e mulheres não são especiais e existem às dúzias por aí, a gargalhadas, como bonecos de cera sem graça.

Folha de S. Paulo (03 de maio de 2010)

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