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domingo, 22 de agosto de 2010

"A origem" - Contardo Calligaris


SABIA PELA imprensa que, no novo filme de Christopher Nolan, "A Origem", os heróis (ou vilões, que sejam) invadem o mundo onírico de alguém, transformam, ou mesmo fabricam seu sonho e, com isso, manipulam o próprio sonhador.
Confesso que fui ao cinema com um certo preconceito. A pintura (Salvador Dalí, De Chirico), a literatura (Breton) e o cinema (de Fritz Lang a Hitchcock) inventaram uma estética do sonho que é sedutora, mas não tem muito a ver com nossa experiência de sonhadores.
Com isso, eu antevia um filme pouco plausível, laborioso e afastado do meu cotidiano. Surpresa total: o mundo do filme de Nolan me pareceu familiar e absolutamente realista. Só que não foi pela representação do mundo dos sonhos. Ao contrário, "A Origem", para mim, é fiel à realidade na qual vivemos quando NÃO estamos sonhando.
Salvo exceções, exatamente como os personagens de Nolan quando sonham, vagamos pelo mundo aparentemente acordados, mas suficientemente sedados para que possamos esbarrar apenas em nossas próprias projeções: fantasmas do passado, alucinações do desejo e defesas -espécie de seguranças armados que deveriam nos proteger (vai saber de quê) e acabam se virando sempre contra nós mesmos.
Assisti ao filme no cinema Leblon, no Rio de Janeiro, no sábado à tarde. Depois da sessão, voltei a pé até o Arpoador.
Ao longo da Vieira Souto, caminhei na fantasmagoria de um Carnaval do passado, que começara, justamente, com uma saída da Banda de Ipanema e em que tudo dera errado. Os fantasmas riam de mim: se eu os tivesse enxergado à época, teria previsto um fracasso amoroso que, dez anos depois, foi doloroso sobretudo por ser tardio.
No Arpoador, apesar do frio, havia um menino brincando nas ondas; achei que ele corresse perigo, levado pela ressaca. Um jovem avançou no mar para trazê-lo de volta para a praia.
Nos anos 80, três vezes por ano, eu ia de Porto Alegre ao Rio para acompanhar meu filho até o avião que o levaria de volta para a França, onde ele morava com a mãe. Era o fim de suas férias e o momento em que a gente ia se separar, de novo. Chegávamos ao Galeão ao meio-dia e corríamos de táxi até Ipanema para mergulharmos no mar antes de ele embarcar. Pois é, no sábado passado, cruzei o olhar do menino que voltava das ondas: era um olhar de crítica e decepção por eu deixá-lo viajar para longe de mim ou por eu ter viajado para longe dele -era o olhar de meu filho.
Do Leblon ao Arpoador, passei por vários níveis do videogame de minha vida e, embora houvesse gente nas ruas, no fundo, não encontrei ninguém de verdade, só assombrações.
Há mais uma razão pela qual o mundo de "A Origem" me pareceu curiosamente familiar. Disse que, no filme, os heróis acompanham alguém num passeio pelo seu mundo psíquico e, nessa andança, eles extraem e inserem pensamentos. É muito diferente do trabalho de um psicoterapeuta ou psicanalista?
Sem revelar nada que atrapalhe o prazer dos futuros espectadores:
1) Para sair um pouco da assombração, é bom matar alguns fantasmas (o de um antigo amor que nos pede, por exemplo, para morrer com ele, ou o de um pai cujas últimas palavras continuam vivas como uma maldição). Suicidar nosso narcisismo também nos ajuda a voltar para a realidade. Mas é bom não confundir o suicídio de nosso narcisismo com o suicídio de nossa pessoa.
2) No fim do filme, a vítima de nossos heróis descobre algo que muda seu futuro de maneira positiva -qualquer terapeuta concordaria. Essa "verdade" foi plantada por nossos heróis, os quais também arquitetaram o lugar escondido e proibido onde a vítima encontra seu "segredo" (o que faz, obviamente, que ela aceite e preze essa "descoberta", que é, de fato, um engodo).
Qualquer psicanalista ou psicoterapeuta dirá que, numa cura, ele pode extrair pensamentos nocivos e desnecessários, mas ele nunca inseriria nada; isso seria sugestão, coisa de padre e pastor.
Concordo, mas, saindo do cinema, pensei: e se, como os heróis de Nolan, a gente estivesse praticando a arte insidiosa (e, às vezes, benéfica) de plantar no paciente nossas ideias transvestidas de segredos? Foucault adoraria essa dúvida.
Só me resta desejar a todos um bom filme.

Folha de S. Paulo (12 de agosto de 2010)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Castigos físicos - Contardo Calligaris


UMA RECENTE pesquisa Datafolha (Folha, 26/7) mostra que, no Brasil, 69% das mães e 44% dos pais admitem ter batido nos filhos.
Parêntese. Os pais são tão violentos quanto as mães: simplesmente, eles passam menos tempo em casa e lidam menos com o "adestramento" dos filhos.
A pesquisa constata também que 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças. Como se explica, então, o fato de que 54% dos brasileiros se declaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos físicos em crianças? Há várias hipóteses possíveis.
1) Talvez quem apanhou quando criança não queira perder o direito de se vingar em cima dos filhos.
2) Talvez não aceitemos a ideia de que os nossos pais tinham sobre nós uma autoridade maior do que a que nós temos ou teremos sobre nossos filhos.
3) Na mesma linha, talvez estejamos dispostos a apanhar dos superiores sob a condição de sermos autorizados a bater nos subalternos.
Nota: aceitar apanhar dos mais poderosos para poder bater nos mais fracos é a caraterística que resume a personalidade burocrático-autoritária do funcionário fascista.
4) A autoridade, dizem alguns com razão, sempre tem um pé na coação e recorre à força quando seu prestígio não for suficiente para ela se impor. Hoje, a autoridade simbólica dos adultos é cada vez menor. É provável que os próprios adultos sejam responsáveis por isso (principalmente, por eles se comportarem cada vez mais como crianças); tanto faz, o que importa é que o prestígio dos adultos não lhes garante mais respeito e obediência. Portanto, a palavra aos tabefes.
É um erro: o castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é apenas a força. A reação mais sensata da criança será: tente de novo quando eu estiver com 15 anos e 1,80 m de altura.
Esses e outros argumentos a favor da palmatória não encontram minha simpatia. Até porque verifico que os rastos desses castigos não são bonitos. Mesmo um simples tapa é facilmente traumático tanto para o pai que bateu como para o filho: ele paira na memória de ambos como uma traição amorosa que não pode ser falada por ser demasiado humilhante (para os dois). Há pais violentos que passam a vida na culpa, e há crianças cuja vida erótica adulta será organizada pela tentativa de encontrar algum sinal de amor no sadismo dos pais.
Apesar disso, se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente eu teria me declarado contra a nova lei, por duas razões.
A primeira (e menos relevante) é que existem violências contra crianças piores do que a violência física, e receio que uma lei reprimindo o castigo físico nos leve a pensar que, por assim dizer, "o que não bate engorda". Infelizmente, não é preciso bater para trucidar uma criança.
A segunda razão (e mais relevante) é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder absoluto sobre o corpo dos filhos. Mesmo sem a nova lei, o professor que visse sinais de violência no corpo de um dos alunos avisaria à polícia e à autoridade judiciária. O mesmo valeria para o pediatra ou para o psicoterapeuta. Inversamente, um pai cujo filho fosse batido na escola processaria o professor e a instituição. Também, com um pouco de sorte, uma criança batida pode denunciar o adulto que a abusa.
Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral?
Essas leis me parecem ter sobretudo a intenção de afirmar, demonstrar e estender o poder do Estado na vida dos cidadãos.
Uma coisa aprendi com Michel Foucault: o poder moderno é raramente extravagante em suas exigências. Como ele não tem conteúdo específico, mas gosta apenas de se expandir, ele escolhe o caminho mais fácil, conquistando a adesão "espontânea" de seus sujeitos. Como? Simples: operando "obviamente" "pelo bem dos cidadãos" -no caso, pelo bem das crianças.
Resumindo:
1) sou absolutamente contra qualquer castigo físico; 2) sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais.

Folha de S. Paulo (05 de agosto de 2010)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Divórcios contagiosos - Contardo Calligaris


MUITOS RECÉM-SEPARADOS se queixam (com razão) de que sua relação com os amigos de antes não é mais a mesma. Não é tanto porque, diante de uma separação ou de um divórcio, os amigos se dividiriam em dois times opostos. Isso é raro.
Mais frequentemente, os casais que eram próximos do casal que se separou tendem a evitar qualquer um dos recém-separados.
Às vezes, os desquitados entendem seu afastamento como uma condenação moral por eles terem se separado. Isso lhes resulta intolerável, vindo de amigos que, em muitos casos, foram confidentes ao longo do drama da separação.
Outras vezes, os desquitados entendem que os casais de amigos, ao se afastarem deles, protegem-se contra alguma tentação erótica. É o cúmulo, eles dizem: se a simples aparição de um desquitado ou de uma desquitada é suficiente para ameaçar o casamento, talvez devessem fazer como a gente, separar-se.
Uma pesquisa recente, de R. McDermott, J. Fowler e N. Christakis (http://migre.me/Y90v), mostra que os casais talvez tenham alguma razão quando decidem fugir dos amigos desquitados, pois separações e divórcios não são apenas dramas privados (que afetam o casal e seus rebentos), mas são também fenômenos coletivos porque, curiosamente, eles são contagiosos.
Os autores da pesquisa usaram o banco de dados de um estudo (originalmente sobre o risco de doença cardíaca) que acompanha a população de Framingham, EUA, desde 1948. Para a segunda geração de pesquisados (5.124 indivíduos), entre outras informações, continuam sendo anotadas, a cada dois anos, as diferentes listas dos que cada um identifica como seus amigos, parentes, vizinhos e colegas. Obviamente, muitos dos que são indicados nas listas fazem, eles mesmos, parte da amostra da pesquisa.
Recortando os dados, os autores constataram que as chances de um indivíduo se divorciar aumentam em 75% quando ele se relaciona diretamente com alguém que está se divorciando ou acaba de se divorciar. Quando o desquitado está a dois graus de separação (ou seja, é o amigo de um amigo), o efeito é menor, mas permanece: as chances de nosso indivíduo se divorciar aumentam em 33%.
Será que a causa disso seria a ruína que a sedução erótica exercida pelos desquitados levaria ao casamento dos outros? Ou será que os próximos que se divorciam nos parecem mais alegres e nos tentam com a imagem de sua nova vida? Uma leitura atenta da pesquisa permite afinar a explicação.
De fato, o aumento de 75%, que mencionei antes, é a média dos efeitos diferentes produzidos pelo divórcio de amigos, parentes, colegas e vizinhos. Quando o "amigo" de alguém se divorcia, a probabilidade de esse alguém também se divorciar dentro de dois anos aumenta em 147%. E, no caso do divórcio de parentes, colegas e vizinhos, quase nada acontece. Em outras palavras, o "contágio" do divórcio funciona mesmo entre amigos e, fato significativo, numa direção apenas: o divórcio se transmite de quem é identificado como amigo para quem assim o identifica. Explico.
As relações de amizade registradas pela pesquisa são, em grande parte, não recíprocas: os que fulano indica como seus amigos não indicam fulano como amigo deles. Entende-se que muitos identificam como "amigos" não seus reais companheiros de cada dia, mas indivíduos que eles admiram, que eles gostariam que fossem seus amigos.
Esse tipo de "amigo", idealizado (e duvidoso), é sempre o porta-estandarte de nossos devaneios. Se ele se divorciar, será, automaticamente, para nós, o exemplo (tentador) da felicidade livre e solteira à qual receamos ter renunciado.
Pouco importa que, eventualmente, o tal amigo lamente amargamente a solidão; preferiremos pensar que ele está vivendo um de nossos sonhos frustrados. Invejá-lo é a revanche contra o que não dá certo (e sempre há algo que não dá certo) em nosso casamento. Invejá-lo e, quem sabe, querer imitá-lo.
Moral da história. Para preservar seu casamento, não é preciso afastar seus amigos recém-separados. Basta (e é mais saudável) parar de identificar como amigos indivíduos que não incluiriam você na mesma categoria.

Folha de S. Paulo (22 de julho de 2010)

Dois jeitos de viajar - Contardo Calligaris


NO FIM da adolescência, eu não queria mais viajar com meu pai, pois gostávamos de viajar de jeitos diferentes. Eu entendia essa diferença pensando nos estilos opostos de George Byron e John Ruskin, dois grandes amantes de Veneza.
Byron dedicou a Veneza o quarto canto de "Childe Harold's Pilgrimage" (a peregrinação do cadete Harold), cujos primeiros versos, "Parei em Veneza, sobre a Ponte dos Suspiros etc.", ainda são declamados por hordas de jovens românticos, quando olham para a dita ponte.
O curioso é que, em "Childe Harold", Veneza é apresentada como uma ruína solene e grandiosa. De fato, Byron não tinha interesse algum pela arquitetura e pelas artes. Ele gostava de acumular experiências e tolerava os monumentos apenas se eles fossem animados por uma boa história.
Byron ficou em Veneza de 1816 a 1819, primeiro nas Frezzerie, no apartamento de um alfaiate de cuja mulher ele era o amante, logo, a partir de 1818, num palácio, onde acumulou bichos exóticos, carnavais e gonorreias. Mais próximo de sua real experiência veneziana, Byron escreveu "Beppo" (Nova Fronteira), que é um extraordinário e divertido poema narrativo.
Ruskin, 30 anos mais tarde, encontrou uma Veneza totalmente desertada pelos restos da festa do século 18. De qualquer forma, já por índole, Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos.
Todos nós, quando viajamos, somos um pouco Ruskin e um pouco Byron. Mas meu pai era mais Ruskin, e eu, mais Byron.
Ora, acabo de voltar de Veneza e, no último dia, tive um encontro do qual Byron teria gostado (Ruskin também, só que menos).
Sou um leitor das aventuras de Corto Maltês, os quadrinhos de Hugo Pratt (em português, pela Pixel). No fim de "Favola di Venezia", Pratt, perdido num emaranhado de personagens e situações, declara que existem, em Veneza, "três lugares mágicos e escondidos: um está na calle do Amor dos Amigos; outro, perto da Ponte das Maravilhas; o terceiro, na calle dos Marranos, perto de San Geremia no Gueto".
Quando os venezianos estão em apuros, eles procuram esses lugares secretos e, "abrindo as portas que estão no fundo dos pátios, vão-se embora para lugares lindíssimos e para outras histórias". Corto Maltês bate numa porta e diz: "Sou Corto Maltês, deixo esta história e peço para entrar numa outra, num outro lugar". Pronto, ele começa uma nova aventura.
Um propósito de minha estadia veneziana era de encontrar os três lugares. Deixando de lado a calle dos Marranos (que não consigo identificar), entrei em todos os pátios nos arredores da Ponte das Maravilhas e do Ramo do Amor dos Amigos. Mas como saber quais eram as portas mágicas?
O livro "La Guida di Corto Maltese alla Venezia Nascosta" (o guia de C. M. à Veneza escondida), de G. Fuga e L. Vianello (Rizzoli, existe também em inglês), é perfeito para passear por Veneza num estilo mais Byron que Ruskin. Mas a leitura não me ajudou a encontrar as portas.
Finalmente, na tarde de sábado passado, na livraria AcquaAlta, na Longa Santa Maria Formosa, conversei com um senhor de barba branca, que estava folheando uma aventura de Corto Maltês. Imaginei que ele pudesse ter sido um amigo de Pratt, dos anos 1970, companheiro das noites no restaurante Graspo de Uva.
O fato é que ele se lembrava da história dos três lugares de Veneza e, quando lhe perguntei se ele saberia indicar as famosas portas, ele me respondeu: "A mim me parece" (é assim que fala um veneziano) "que, se você as procura, é que você já as encontrou". E logo ele se foi.
Como interpretar essa frase a la Pascal? Entendi assim: se eu acreditava numa ficção a ponto de procurar os lugares que ela inventa, eu não precisava de mais nada para passar de uma história a outra. Pois o segredo é inventar.
Pensei que Ruskin teria gostado da ideia de procurar os lugares mencionados por Pratt, mas só Byron teria aberto as portas. Ele, aliás, não parava de abrir portas e fugir para novas histórias. Vai ver que, em Missolonghi, quando sumiu, aos 36 anos, combatendo pela independência da Grécia, ele não morreu, apenas abriu mais uma porta. E foi para outra.

Folha de S. Paulo (15 de julho de 2010)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Preços e valores - Contardo Calligaris


QUANDO PASSO por Veneza, sempre visito a livraria antiquária Linea d'Acqua, na calle della Mandola, uma das últimas que sobram na cidade.
Não sou mais colecionador (vendi minha biblioteca quando deixei os EUA, em 2004), mas os livros antigos continuam sendo, para mim, uma fonte de prazeres sensoriais e intelectuais. Gosto de manuseá-los e gosto de conversar sobre edições, encadernações etc.
Passei um tempo com Luca Zentilini, o livreiro de Linea d'Acqua, examinando dois livros.
Um era a primeira edição de "The Stones of Venice", de Ruskin: três volumes, publicados entre 1851 e 1853, in-oitavo, na encadernação original da editora. Não faltava nenhuma das numerosas pranchas (muitas aquareladas) que reproduzem os desenhos arquitetônicos originais de Ruskin.
"As Pedras de Veneza" (Martins Fontes) tornou-se e continua popular (em todas as línguas) numa versão reduzida, que permite levar o volume consigo na mala. Mas, cuidado, o livro não é apenas um extraordinário guia de viagem, é também das grandes obras do século 19.
A edição original, nunca reimpressa, foi de menos de mil exemplares. Quantos desses conjuntos de três volumes ainda existem?
O outro livro que Zentilini me mostrou era a edição de Francesco Franceschi do "Orlando Furioso", de Ludovico Ariosto. Quem não conhece essa maravilhosa edição, de 1565, veja uma página em http://migre.me/Ue6o. O exemplar era perfeito, com todas as gravuras.
O livro de Ruskin custava 2.000 (R$ 4.450). A edição de 1565 do Ariosto custava o dobro.
Caros? Sim, certo. Só que, não muito longe de Linea d'Acqua, na calle Larga 22 Marzo, não faltam clientes para vestidos ou acessórios produzidos em série, que custam tanto quanto um Ariosto de 1565, se não mais.
Justamente, foi no começo do século passado que as bibliotecas começaram a ser dizimadas por seus próprios donos. Arrancar páginas de um livro antigo acaba com a integridade da obra (e também com seu valor de revenda), mas, convenhamos: páginas emolduradas podem ser mostradas, ostentadas. Ou seja, uma gravura na parede vale mais que um livro com todas suas gravuras, fechado, na estante.
Em Verona, na via Dietro San Sebastiano, há uma alfaiataria e camisaria napolitana (na Itália, isso é um pleonasmo: em alfaiataria, napolitano significa tradicional).
O alfaiate me explicou que propõe dois tipos de camisa, ambas nos mesmos algodões "doppio ritorto". O tipo mais barato é confeccionado a máquina, salvo, "obviamente", para a costura que segura a manga à camisa e que deve sempre, imperativamente, ele explicou, ser feita a mão, sob pena de uma "desconfortável rigidez".
O outro tipo de camisa é inteiramente costurado a mão, o que garante uma mobilidade e um caimento que uma camisa costurada a máquina nunca terá. Pois bem, o preço de uma camisa costurada a mão é de 100 (R$ 222).
Enquanto o alfaiate napolitano e eu levávamos essa conversa na alfaiataria deserta, a via Mazzini, a poucos metros de lá, estava abarrotada de turistas comprando camisas mais caras, fabricadas nos quatro cantos do Oriente e, às vezes, em tecidos sintéticos duvidosos.
Perguntei ao alfaiate por que, ao seu ver, os clientes preferiam as lojas da via Mazzini ao seu ateliê. Ele respondeu, com sabedoria certa.
Primeiro, há a necessidade da satisfação imediata: o consumidor quer pagar e levar para casa (nada de encomendar, tirar as medidas do corpo, esperar a primeira e a segunda prova etc.).
Segundo, e mais importante, os produtos das lojas da via Mazzini têm algo que suas camisas e seus ternos não têm. Imaginei que ele fosse me confessar alguma inferioridade de seus artefatos, mas ele acrescentou apenas: "Os produtos da via Mazzini têm uma marca, uma marca que todas as pessoas reconhecem".
P.S.: Para Clóvis Rossi e os amigos que pediram que comentasse a derrota de seleção. Depois do jogo contra a Holanda, postei isto no meu Twitter (@ccalligaris): 1) às vezes a gente ganha, às vezes não; 2) ganhar não é um direito natural nem adquirido; 3) o Brasil é mais do que uma seleção de futebol.

Folha de S. Paulo (08 de julho de 2010)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Toy Story" - Contardo Calligaris


Assisti a "Toy Story 3" na quinta passada. Era noite, e, na sala, só havia adultos, que saíram todos comovidos, sorrindo e fungando. Talvez nosso envelhecimento se pareça um pouco com o destino dos brinquedos abandonados pelas crianças que se tornam grandes.
Por exemplo, quando os filhos não brincam mais conosco, antes de tomar o caminho do sótão-asilo ou o do lixão-cemitério, sonhamos com a possibilidade de sermos, durante um tempo, brinquedos para nossos netos. Bem como os protagonistas de "Toy Story 3".
O filme me deixou também com saudade da fantasia livre e maluca que organizava meus jogos de criança. Inevitavelmente, acabei pensando nas gerações de brinquedos que me acompanharam na infância.
Quando meus pais morreram, eu morava longe, e meu irmão se ocupou de esvaziar o apartamento de nossa infância.
Foi assim que ele adentrou sozinho pelos dois imensos closets da sala, que nós chamávamos de "cavernas de Ali Babá" e que continham, entre inúmeras outras coisas, nossos brinquedos aposentados.
Meu irmão decidiu transferir esses sobreviventes para sua casa e, ao pedir meu consentimento, mencionou os mais valiosos, o trem elétrico, os soldadinhos de Fort Apache. Quanto aos outros, eu imaginava que ele os doaria ou descartaria.
Nada disso. Nestes dias, passando duas semanas na Itália, com "Toy Story" na lembrança, explorei, pela primeira vez, um armário de três portas que está no corredor do apartamento veneziano que divido com meu irmão.
Encontrei nossos velhos jogos de sociedade, quebra-cabeças, um "Pequeno Químico", um porta-aviões sem aviões, caminhões, robôs etc. Enfim, atrás desse amontoado, esbarrei num helicóptero, bem guardado em sua caixa original, com um ar de novo. Desse brinquedo me lembrei perfeitamente.
No dia de Natal, meu irmão e eu acordávamos pelas quatro da manhã, ansiosos para conhecer, enfim, nossos presentes, todos embrulhados embaixo da árvore. Abríamos os pacotes e brincávamos sozinhos, antes de meus pais acordarem.
Vencidos pelo cansaço, voltávamos para cama levando os brinquedos dos quais mais tínhamos gostado e que dormiriam conosco mais uma hora ou duas.
No Natal dos meus sete ou oito anos, eu ganhei um helicóptero. Não era teleguiado (era o começo dos anos 50), mas voava. Sim senhor, voava mesmo. Ele era ligado por um cabo a um comando mecânico (não elétrico): ao girar (freneticamente) uma manivela, o movimento era multiplicado e transmitido até às pás do rotor, de forma que, efetivamente, o helicóptero se levantava até o braço da gente cansar.
Amei o helicóptero. Amei a sensação de que ele voava não por alguma mágica, mas pelo meu esforço. Brinquei com ele mais ou menos uma hora, até que, inexplicavelmente, ele quebrou; eu acionava a manivela, ouvia um ruído de engrenagens infelizes, e as pás permaneciam paradas.
Não tenho como reconstruir exatamente a cadeia de meus pensamentos; só sei que o que prevaleceu não foi a pena pela perda do brinquedo novo, mas uma espécie de sentimento protetor. Explico.
Eu não sentia culpa (tinha brincado do jeito que era mesmo para brincar com o helicóptero), mas não aguentava a ideia de que meus pais tivessem notícia da morte precoce de seu presente, que, certamente, eles tinham escolhido com carinho e pago com esforço. Em suma, eu precisava proteger os meus pais.
Não disse nada; coloquei o helicóptero de volta na caixa e o levei para a cama comigo. Quando acordei, não sei como, consegui convencer a todos de que aquele era meu presente preferido, por isso eu não queria que outros brincassem com ele, nem meu irmão e ainda menos os sobrinhos convidados para o almoço de Natal.
Milagrosamente, mantive essa ficção durante os dias seguintes: adorava o helicóptero, e ninguém podia tocar nele.
De fato, ninguém nunca mais brincou com ele. Eu tampouco, é claro; brincar com ele quebrado teria sido revelar minha mentira.
E agora o helicóptero está aqui, na sua caixa de origem -símbolo de minha vontade sofrida e um pouco louca de fazer e proteger a felicidade de meus pais.
Tem cara de novo, mas é um pouco tarde para invocar a garantia.

Folha de S. Paulo (1º de julho de 2010)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Torcer ou pensar, eis a questão - Contardo Calligaris


Pela minha história, sinto-me parte de várias nações e, na Copa do Mundo, torço por todas elas. Quando se enfrentam duas seleções com as quais me identifico, sou privilegiado: seja qual for o desfecho, um de meus times preferidos ganhará.
Embora tenha uma verdadeira repugnância por qualquer forma de nacionalismo, a torcida da Copa do mundo é a única à qual consigo me juntar. É porque, na Copa, os torcedores vibram, festejam ou se desesperam sem transformar os adversários em objetos de ódio e desprezo.
Exemplo. No jogo de domingo entre Brasil e Costa do Marfim, o time africano pegou pesado, a ponto de me inspirar uma certa antipatia. Também, por ufanismo continental, o público sul-africano torceu pela Costa do Marfim e aplaudiu a expulsão de Kaká, cuja única culpa foi de se irritar e manifestar sua irritação.
Pois bem, ninguém, nem o exuberante pessoal na sacada do prédio em frente do meu, gritou impropérios contra o time da Costa do Marfim e ainda menos contra seu povo. Tampouco ouvi insultos contra o público sul-africano.
Na hora da expulsão de Kaká, ecoou, isso sim, um único berro que expressava uma forte dúvida sobre a honra e o recato da mãe do árbitro. Mas aí, também, ninguém é de ferro (estou brincando).
Por que é possível torcer na Copa do Mundo sem ser devorado pela irracionalidade que afeta as torcidas organizadas de nossos clubes?
A Copa acontece só a cada quatro anos, ou seja, as rivalidades são esporádicas, não se cristalizam. Além disso, os adversários da Copa são variados, distantes e diferentes de nós, enquanto, em geral, os humanos gostam de odiar seus vizinhos.
Justamente, quando existe uma rivalidade estabelecida entre duas seleções nacionais, é entre países próximos, com similitude de destino, como Brasil e Argentina.
Mas mesmo esse tipo de rivalidade "tradicional" não se compara com o ódio que opõe as torcidas de clubes da mesma cidade e do mesmo Estado. Essas torcidas são vítimas dos piores efeitos do grupo sobre o pensamento e os critérios morais do indivíduo.
O que é efeito de grupo? Exemplo: UM jovem playboy entediado não colocaria fogo num índio que dorme num abrigo de ônibus. QUATRO playboys entediados são capazes disso; é possível, aliás, que os quatro se reúnam justamente para, juntos, autorizar-se a fazer algo que, separados, eles nunca fariam.
Vamos agora a um jogo entre São Paulo e Corinthians (ou qualquer dupla de rivais da mesma cidade).
O torcedor corintiano, que está do meu lado, bem antes que a bola role, já roga pragas à torcida do São Paulo, que são "a bicharada" ou "os bambis". Nosso corintiano, uma vez extraído de sua torcida, não imagina, obviamente, que todos os são-paulinos, jogadores e torcedores, sejam "viados".
Tem mais: na grande maioria dos casos, na sua vida "real", fora do estádio, ele tampouco pensa que a opção sexual de alguém possa servir de insulto, ou seja, ele não acredita que os são-paulinos sejam bichas e não acredita que "bicha" seja um insulto.
Meu amigo torcedor, aliás, poderia ser ele mesmo homossexual; tanto faz, não por isso ele deixaria de gritar "bicha-raaaada". O mesmo vale para um são-paulino e seus gritos contra a torcida corintiana.
Resumindo, por fazer parte da torcida e para se integrar nela, o torcedor diz ou grita algo que não tem nada a ver com o que ele pensa quando pensa sozinho (que, cá entre nós, é o único jeito de pensar).
Por isso, só consigo torcer na Copa, e para quatro nações. Isso sem contar os times pelos quais me apaixono "só" porque jogam bem.


Começo hoje meu Twitter: ccalligaris, com o "s" final que falta no meu e-mail, www.twitter.com/ccalligaris. Postarei minirelatos de eventos do cotidiano, reflexões (minhas ou lidas, ouvidas e citadas), fotografias, indicações de filmes, peças, livros, exposições (e, por que não, restaurantes, pratos e vinhos). Haverá avisos de atividades (palestras etc.) e crônicas de minhas viagens.
Em outras palavras, será um microdiário -com um pouco de sorte, um novo estilo; de qualquer forma, uma nova experiência. Como se diz, todos estão convidados.

Folha de S. Paulo (24 de junho de 2010)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Os adolescentes que merecemos - Contardo Calligaris


ABBY SUNDERLAND nasceu na Califórnia, em outubro 1993. A família vivia num barco, ao longo da costa do Pacífico.
O irmão mais velho de Abby, Zac, aos 17 anos, tornou-se o mais jovem velejador a circum-navegar a Terra sozinho. O recorde de Zac não resistiu muito tempo: logo, Michael Perham, um adolescente inglês um ano mais jovem que Zac, completou sua volta solitária ao mundo. Note-se que Perham, aos 14 anos, já tinha atravessado o Atlântico sozinho.
Abby também, desde seus 13 anos, sonhava em circum-navegar a Terra. No começo deste ano, aos 16, sozinha, ela largou as amarras de seu veleiro de 12 metros e desceu o Pacífico Sul. Passou o Cabo Horn, atravessou o Atlântico e passou o Cabo de Boa Esperança, lançando-se no Oceano Índico. Entre a África e a Austrália, Abby encontrou uma tempestade à qual o mastro de seu barco não resistiu. No sábado passado, depois de dois dias à deriva num mar infernal, ela foi resgatada.
Pela internet afora e na imprensa dos EUA, os pais de Abby estão sendo criticados por um coro indignado: como vocês puderam deixar uma menina de 16 anos errar sozinha pelo mar e pelos portos? Fora tsunamis e tempestades, o que dizer dos meses insones espreitando o mar e o vento a cada meia hora, da solidão, do trabalho incessante, do frio, do desconforto de uma navegação solitária ao redor do mundo? E os piratas ao sul da Malásia? Por qual permissividade maluca vocês aceitaram que Abby se lançasse numa aventura que seria arriscada para gente grande?
Já a bordo do barco que a resgatou, Abby escreveu no seu blog: "Há uma quantidade de coisas que as pessoas podem estar a fim de culpar pela minha situação: minha idade, a época do ano e muito mais. A verdade é que passei por uma tempestade, e você não navega pelo Oceano Índico sem entrar em, no mínimo, uma tempestade. Não foi a época do ano, foi apenas uma tempestade do Oceano Sul. As tempestades fazem parte do pacote quando você veleja ao redor do mundo. No que concerne à idade, desde quando a mocidade do velejador cria ondas gigantescas?".
Se você duvida que Abby tivesse a maturidade necessária para sua empreitada, leia o diário da viagem (www.soloround.blogspot.com) -sobretudo as notas de Abby durante a interminável navegação no Atlântico Sul.
Os que censuram os pais de Abby afirmam que nunca autorizariam seus rebentos a velejar sozinhos ao redor do mundo porque, aos tais rebentos, falta seriedade e falta experiência. Eles devem ter razão -afinal, eles conhecem seus filhos. Mas cabe perguntar: essa falta de seriedade e experiência é efeito de quê? Da simples juventude? Duvido: La Pérouse, o navegador francês, aos 17 anos, em 1758, já estava combatendo os ingleses ao largo de Terra Nova. Então, efeito de quê?
Pois é, provavelmente, os mesmos pais que se indignam com a "irresponsabilidade" dos genitores de Abby permitem a seus filhos, mais jovens que Abby, de sair em baladas nas quais os únicos adultos são os que vendem drogas e bebidas.
Será que a volta para casa de madrugada, num carro dirigido por amigos exaustos, exaltados ou sonolentos, é menos perigosa do que a circum-navegação do mundo num veleiro pilotado por Abby, animada há anos por um desejo intenso e focado? E, de qualquer forma, qual das duas experiências você prefere para seus filhos?
O fato é que muitos pais preferem que os filhos errem como baratas tontas, de festinha em festinha. Por quê? Simples: assim, os filhos ficam infinitamente mais dependentes.
E os pais modernos, em regra, querem os filhos por perto; eles adoram que os filhos demonstrem que eles não são suficientemente maduros para sair pelo mundo e para correr os riscos que o desejo acarreta.
Não deveríamos nos perguntar qual é a loucura dos pais que empurraram Zac, Abby e Michael mar adentro, mas qual é a loucura dos pais que preferem largar seus filhos nas noites, em que vodca, cerveja, maconha, ecstasy e papo furado servem para convencer os próprios adolescentes de que ainda não começaram a viver e, portanto, vão precisar dos adultos por muito tempo.
Comentando a aventura de Abby, um pai me disse: "Nunca deixaria minha filha navegar sozinha, eu não quero perdê-la". Pois é, "não quero perdê-la" em que sentido?

Folha de S. Paulo (17 de junho de 2010)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O direito de buscar a felicidade - Contardo Calligaris


O ARTIGO SEXTO da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".
O Movimento Mais Feliz (www.maisfeliz.org) promove uma emenda constitucional pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o fim).
É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem absolutamente necessária para a busca da felicidade.
Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas, fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA, ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os direitos sociais.
Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista? Simples.
A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.
Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo; para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus; para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.
Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade que eu busco.
Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz, quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.
Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o estuprador a desprezam.
Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus sujeitos procuram.
Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais, certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade que teria uma mais "nobre" inspiração moral?
Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre "sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma felicidade para todos. É isso que você quer?
Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade, quase um ato de resistência.

Folha de S. Paulo (10 de junho de 2010)

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Conselho para escolher carreira - Contardo Calligaris


A ESCOLA pública italiana impunha uma aula semanal de religião (católica, claro). Na terceira série, aprendi que, para me tornar sacerdote, seria imprescindível que eu tivesse "a vocação" (com o artigo definido).
Em princípio, essa condição facilitava as coisas: afinal, ou eu era chamado por Deus ou não era. No entanto, Deus não chama a gente por carta registrada.
Era possível, eu pensava, que ele se manifestasse por sinais misteriosos, que eu não entenderia, ou pior, que eu evitaria entender -talvez porque preferisse perseguir ambições mais mundanas ou porque meus pais não gostassem da ideia de ter um filho padre.
Seja como for, se eu recebesse, mas não escutasse a chamada, não estaria apenas fazendo pouco caso da vontade divina: eu estaria fugindo de meu destino, seria culpado de desperdiçar minha vida.
Na quarta e quinta séries, foi a vez de o Estado se preocupar com nossas vocações. Naquela época, era necessário escolher muito cedo entre o clássico, o científico e os cursos técnicos que levavam diretamente para o trabalho, sem dar acesso para as faculdades.
Tratava-se, portanto, de saber se tínhamos jeito para as humanas ou para as exatas e, em cada caso, qual era o tamanho do nosso jeito. Uma casa caiu, sepultando seus moradores; seu primeiro pensamento é "se Deus existe, por que ele permite tamanho sofrimento?"; pois bem, as humanas são sua vocação.
Restava verificar, com outros testes, se você tinha pano suficiente para ser professor de filosofia ou se era melhor que você se contentasse em ser repetidor no primário.
De fato, a orientação profissional precoce eternizava a divisão social (nunca vi um aluno de classe média-alta ser encaminhado para cursos técnicos). Mas a intenção era nobre: descobrir qual era a semente escondida em cada um de nós.
Detectando o embrião de nossas aptidões e disposições, poderíamos agir de maneira que a vida realizasse plenamente o nosso potencial.
A partir dos anos 60, em grande parte graças à influência da psicologia de Alfred Adler, ficou claro que, na hora de escolher uma carreira, os talentos e as predisposições são tão importantes quanto os sonhos, os devaneios, as paixões e as imagens idealizadas de tal ou tal outra profissão que encontramos, por exemplo, nas ficções que nos marcam.
O medo de não escutar a chamada divina foi substituído pelo medo de não entender direito nosso próprio desejo -pois seríamos competentes, "realizados" e felizes só se nossa profissão for uma extensão de nossas paixões íntimas. Nesse caso, o trabalho seria leve e divertido, como um hobby.
Em suma, a semente que estaria em nós e que deveria vingar se tornou mais complexa. Mas a ideia de que existe uma semente que é preciso descobrir continuou valendo e preocupando pais e filhos.
Uma leitora, Cecília, me escreve sobre as inquietudes da filha, Luana, 16, na hora de escolher uma carreira que esteja "em consonância com a personalidade, o temperamento, o querer" de Luana e também "com o mercado do trabalho".
Uma sugestão para Luana. Entendo que a escolha de um vestibular, de uma faculdade e, em última instância, de uma profissão, pareça um ato definitivo, mas não é nada disso.
Você pode mudar de faculdade e de carreira; pode cursar um ano de direito, escolher passar para ciências sociais, decidir que o que você realmente quer é biologia e, quem sabe, cursar medicina aos 35 anos. Menos óbvio e mais importante é entender que essas mudanças não seriam a prova de fracasso algum.
Se você mudar de faculdade ou carreira, não será porque você se enganou na tentativa de descobrir qual era a semente que você carregava consigo.
Aliás, esqueça a ideia da semente. Ser jovem não é ser semente; é ser, antes de mais nada, uma narrativa aberta. Imagine que você é o começo de uma história: havia uma moça de 16 anos que gostava dos Beatles e dos Rolling Stones e, um belo dia, ela saiu para fazer sua inscrição no vestibular... Continue. E lembre-se de que uma boa história tem reviravoltas e surpresas.
Em poucas palavras, em vez de tentar descobrir a famosa semente, invente sua vida.

Folha de S. Paulo (03 de junho de 2010)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A coragem do amor que dura - Contardo Calligaris


PROLONGANDO MINHAS observações da semana passada sobre "Quincas Berro d'Água", vários leitores e leitoras observaram que a literatura e o cinema, em geral, glorificam a coragem de quem, um belo dia, chuta o balde e vai embora.
E como ficam os que passam a vida inteira deslocando o balde para estancar as goteiras? Será que eles são todos covardes e acomodados?
É inegável: nossa cultura idealiza a ruptura, a aventura, a saída para o mar aberto. Em matéria amorosa, o momento que preferimos contar é a hora do apaixonamento.
Depois disso, gostamos de imaginar que "eles viveram felizes para sempre", mas sem entrar em detalhes que poderiam transformar a história numa farsa.
Uma boa solução, aliás, é que os amantes morram logo. O sumiço (de ambos ou de um dos dois) evita que a comédia da vida que levariam juntos contamine a apoteose do encontro inicial. Os amantes ideais são os que não duraram no tempo: Romeu e Julieta, o jovem Werther e Charlotte, Tristão e Isolda.
Concluir o quê? Que a coragem é sempre a de quem deixa a mornidão de seu conforto para se queimar num instante de paixão? Será que não pode haver coragem nos esforços para que o amor dure?
É óbvio que a duração não é um valor em si: uma relação pode durar a vida inteira e ser uma longa e insulsa experiência repetitiva, sem amor algum. Mas, inversamente, será que as paixões-relâmpago são amores? Enfim, seria útil dispor de uma definição do amor.
Justamente, li nestes dias um livro que me tocou, "Éloge de l'Amour" (elogio do amor, Flammarion 2009, ainda não traduzido para o português), de Alain Badiou; é a transcrição de uma breve entrevista do filósofo francês.
Nela, inevitavelmente, Badiou constata que, em nossa cultura, a visão dominante do amor é a de uma espécie de "heroísmo da fusão" dos amantes, que, uma vez consumidos por sua paixão, podem sair de cena (para não se tornar ridículos) ou sair do mundo e morrer (para se tornar sublimes).
Contra essa visão, Badiou define o amor mais como um percurso do que como um acontecimento: segundo ele, o amor precisa durar um tempo porque é "uma construção".
Confesso que fiquei com medo de que o filósofo nos propusesse amores tagarelas, em que os amantes não parariam de discutir a relação (claro, para construí-la). Por sorte, não se trata disso. Então, o que constroem os amantes?
Geralmente, explica Badiou, minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela.
Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses.
Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela.
Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego.
O amor segundo Badiou, em suma, é uma aventura, mas que precisa ser obstinada: "Abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é uma desfiguração do amor. Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem".
Você aprecia a definição, mas a acha um pouco abstrata? Gostaria da história de um amor que dura e se obstina sem se tornar pesadelo ou farsa? Pois bem, acabo de ler um texto comovedor, bonito e capaz de ilustrar e explicar perfeitamente as palavras de Badiou.
Em "Amar o Que É: Um Casamento Transformado" (Objetiva), Alix Kates Shulman conta como ela e Scott, o marido, reinventaram o mundo, a dois, obstinadamente, depois de um acidente que precipitou Scott numa forma de demência.
Há momentos difíceis, sacrifícios e durezas, mas, curiosamente, o relato não chega nunca a ser triste porque se trata de uma extraordinária história de amor.

Folha de S. Paulo (27 de maio de 2010)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Carpe diem, aproveite o momento - Contardo Calligaris

ESTREIA AMANHÃ , Brasil afora, "Quincas Berro d'Água", de Sérgio Machado, inspirado num dos romances mais bonitos (e mais lidos) de Jorge Amado, "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".
O filme é uma daquelas raríssimas obras que nos fazem rir e sorrir da vida, do mundo e de nós mesmos, enquanto, justamente, pensamos seriamente na vida, no mundo e em nós mesmos.
Esse milagre deve ser efeito do roteiro (do próprio Machado) e da atuação de um conjunto de atores que todos mereceriam ser mencionados, a começar por Paulo José, que é Quincas, vivo e morto (e não pense que encarnar um morto seja tarefa fácil).
Agora, nesse grupo extraordinário, quem rouba a cena é Mariana Ximenes, no papel de Vanda, a filha que Quincas abandonou quando deixou sua vida de funcionário "respeitável" e caiu na farra. Quase sem palavras, com delicadas e progressivas mudanças de seu olhar, Ximenes nos conta, de maneira inesquecível, o despertar nela dos genes paternos.
Enfim, meu jeito de agradecer à equipe que nos oferece esse filme foi anotar algumas reflexões que ele suscitou em mim.
1) Quase sempre, quando sonhamos em mudar de vida radicalmente, enxergamos esse ato como a conquista de uma alforria: seremos livres -dos pais ou, então, da mulher ou do marido que nos aprisionam. De fato, às vezes, os outros nos controlam e nos impedem de viver, mas não é frequente.
Em geral, nós os acusamos pela mesmice de nossa vida ("se nos livrássemos desses tiranos, poderíamos viver plenamente"), mas a tirania que nos oprime é a de nossa inércia e de nossa covardia.
2) Às vezes, num casal, as exigências triviais do parceiro são intoleráveis por parecerem absolutamente insignificantes: tire os pés da mesa, não espalhe o jornal pelo chão da sala nem a roupa pelo chão do quarto. Indignação: a morte nos espreita, e eis que alguém se preocupa com as migalhas que podem cair no sofá.
Como teria dito Sêneca, nós nascemos para coisas grandes demais para continuarmos escravos dessas picuinhas, não é?
Problema: uma vez chutado o pau da barraca, quem garante que a "grandeza" para a qual nascemos não se resuma em comer livremente amendoins na cama?
3) Quincas tem razão: só teme a morte quem não se permitiu viver, ou seja, quem viveu plenamente não tem medo de morrer.
Mas o que é uma vida plena? Será que é a vida de Quincas? A bebida e os amores? A fuga das responsabilidades domésticas?
Talvez o valor da farra de Quincas esteja, sobretudo, na liberdade de viver sem se importar com o julgamento dos outros, com a boa reputação. Para aproveitar a vida, antes de mais nada, não se preocupe com o olhar reprovador dos demais.
4) Reli a ode 1.11 de Horácio, onde está o famoso "carpe diem" (colha o dia). Horácio sugere que não apostemos nossas fichas no futuro, mas nos preocupemos com o agora, com o hoje.
Tudo bem, mas será que viver como se não houvesse amanhã significa necessariamente perder-se (ou encontrar-se) nos prazeres imediatos da carne? Não é nada óbvio. Um cristão poderia concordar com Horácio, entendendo o "carpe diem" assim: é preciso estar em paz com Deus hoje, agora, não amanhã.
5) Então, o que é viver plenamente: gozar, rezar, meditar, cultivar-se?
Talvez seja possível responder sem tomar partido.
Eis uma anedota da qual Quincas teria gostado. O rei da Itália, Vittorio Emanuele 2º, passeava a cavalo pelo campo de seu Piemonte nativo.
Chegou à fazendola de um camponês, que fez grande festa e o convidou à mesa.
Vittorio Emanuele elogiou o vinho do camponês, o qual comentou: "Isto não é nada. Sua Majestade deveria experimentar o de três anos atrás". O rei replicou: "E esse vinho de três anos atrás acabou?". "Não acabou, Majestade", respondeu o homem, "mas a gente guarda o que sobrou para as grandes ocasiões".
Pois é, quando Mefisto comprou a alma de Faust, ele impôs a seguinte condição: Faust viveria até o dia em que, diante da beleza do que ele estaria vivenciando, fosse levado a pedir que o átimo parasse. Quando isso acontecesse, ele morreria, seu tempo acabaria.
Há várias interpretações dessa passagem do "Faust", de Goethe (1, 699-706); uma delas é que Faust só poderia morrer uma vez que ele descobrisse o segredo da vida. E esse segredo é que, para viver plenamente, é preciso reconhecer que, com ou sem o rei sentado à mesa, com farra ou sem farra, na alegria ou na tristeza, cada momento presente é sempre uma grande ocasião.

Folha de S. Paulo (20 de maio de 2010)

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Adoção por casais homossexuais - Contardo Calligaris


NA SEMANA retrasada, por unanimidade, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que casais homossexuais têm o direito de adotar.
Claro, duas mulheres ou dois homens já podiam criar juntos uma criança adotada por um dos membros do casal. Agora, eles poderão compartilhar legalmente a responsabilidade da adoção.
O ministro João Otávio de Noronha declarou que a decisão do tribunal foi guiada pelo princípio de atender ao interesse do menor. No debate a favor ou contra a adoção de crianças por casais homossexuais, todos afirmam, aliás, opinar e agir no interesse dos menores.
A primeira questão nesse debate, portanto, é a seguinte: crianças criadas e educadas por um casal homossexual (feminino ou masculino) sofrem de dificuldades específicas?
Seu desenvolvimento afetivo, intelectual e sexual é diferente do das crianças de casais heterossexuais?
Como disse, faz décadas que, mundo afora, casais homossexuais já criam filhos, naturais e adotivos. E faz décadas que psicólogos, médicos e assistentes sociais pesquisam esses casais e seus rebentos.
O resultado é inequívoco e aparece num documento de 2007, endereçado à Corte Suprema da Califórnia pela American Psychological Association, a American Psychiatric Association e a National Association of Social Workers, ou seja, pelas três grandes associações dos profissionais da saúde mental dos Estados Unidos (psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais).
Esse texto, de 72 páginas, apresentando uma ampla bibliografia de pesquisas, afirma que "homens gay e lésbicas formam relações estáveis e com compromisso recíproco, que são essencialmente equivalentes a relações heterossexuais" (III, A), e que "não existe base científica para concluir que pais homossexuais sejam, em qualquer medida, menos preparados ou capazes do que pais heterossexuais ou que as crianças de pais homossexuais sejam, em qualquer medida, menos psicologicamente saudáveis ou menos bem adaptadas" (IV, B).
Ora, tramitam na Câmara dos Deputados dois projetos contra a decisão do Superior Tribunal de Justiça, um do deputado evangélico Zequinha Marinho (PSC-PA) e outro do deputado Olavo Calheiros (PMDB-AL). Visto que não dá mais para dizer que pais homossexuais sejam nocivos para suas crianças, os projetos se preocupam com o constrangimento das crianças diante dos colegas. Na escola, vão zombar de filho de homossexual. Para evitar esse vexame, melhor proibir a adoção por casais homossexuais.
Pois é, na mesma escola, também vão zombar de negros e de pobres.
Vamos impedir negro e pobre de ter filhos? O cômico é que, no Brasil, o filho de homossexual pode ser objeto de zombaria, mas essa zombaria não se compara com o que pode acontecer com filho de deputado.
Esperando que a reputação da classe política melhore e sentindo sinceramente pelos deputados honestos, no espírito dos projetos Marinho e Calheiros, acho bom proibir também a adoção de crianças por deputados federais e estaduais.
Brincadeira à parte, na nossa cultura, a condição básica de uma educação que não seja demasiado danosa é: os pais não devem querer que os filhos sejam seus clones.
Quando desejamos que nossos filhos sejam a cópia da gente, é para encarregá-los de compensar nossas frustrações: quero um filho igual a mim para que tenha o sucesso que eu não tive ou para que viva segundo regras que eu proclamo, mas nunca consegui observar. Pois bem, para criar e educar no interesse dos menores, é necessário fazer o luto dessas esperanças, que tornam as crianças escravas de nossos devaneios narcisistas.
Agora, a percentagem de homossexuais entre os filhos de casais homossexuais é igual à da média da população, se não menor. Ou seja, aparentemente, os homossexuais não têm a ambição de ver seus filhos se engajar na mesma "preferência" sexual que lhes coube na vida.
Em compensação, quem gosta mesmo de filho-clone são todos os fundamentalistas. É quase uma definição, aliás: fundamentalista é quem quer filhos tão fundamentalistas quanto ele.
Uma conclusão coerente seria: o interesse das crianças permite que elas sejam adotadas (e, portanto, criadas e educadas) por pais homossexuais e pede que a adoção seja proibida aos pais fundamentalistas evangélicos, por exemplo.
Serviço. Para ler o documento de 2007, acessetinyurl.com/docpsi

Folha de S. Paulo (13 de maio de 2010)


quinta-feira, 6 de maio de 2010

Você prefere os obedientes ou os rebeldes? - Contardo Calligaris


VOLTEI AO presídio feminino do Butantã, em São Paulo, para ser jurado de um concurso de miss atrás das grades, com três premiações: Miss Cultura, Miss Simpatia e Miss Beleza.
No concurso de beleza, a administração decidiu que seriam premiadas cinco mulheres, sem hierarquia. Foi uma ótima ideia. A eleição de uma miss sempre deixa a impressão de que exista um único cânone de beleza. De fato, as cinco mulheres premiadas eram bonitas de maneiras muito diferentes. Mas, sobre a diversidade da beleza, escreverei outro dia.
No concurso de Miss Simpatia, o júri só podia se deixar contaminar pela torcida da plateia. Afinal, simpatia é também saber conquistar amizades, muitas amizades.
Mas vamos ao concurso de Miss Cultura. Cada uma das sete finalistas produziu uma redação sobre um dos temas que tinham sido propostos pelos organizadores. Nós, do júri, recebemos as redações, lemos, ponderamos e, no dia do concurso, escutamos as candidatas lendo seu texto e, eventualmente, respondendo às nossas perguntas.
Os próprios temas levaram as mulheres a falar de seus planos de futuro, do uso que elas fizeram ou fariam do tempo de detenção, do arrependimento, da saudade etc. Com isso, era quase inevitável que as considerações das concorrentes fossem sempre muito próximas ao que a sociedade espera que um detento pense e declare. Mas, cuidado, não há crítica alguma nessa minha observação, até porque nada do que as candidatas escreveram soava fingido.
Então qual é o meu problema? Eu preferiria que as candidatas se mostrassem revoltadas e agressivas? Claro que não. No entanto, ao ler as redações, eu me preocupava, paradoxalmente, com a rebeldia das autoras, como se ela fosse uma qualidade que não poderia se perder, que, mesmo numa penitenciária, deveria ser preservada. Que loucura é essa?
Pois bem, é uma loucura absolutamente banal, uma loucura própria de nossa cultura. Se não fosse por ela, aliás, a tarefa dos pais e dos educadores seria imensamente mais fácil. Explico.
Todos queremos que filhos ou alunos respeitem nossa autoridade. Agora, todos também consideramos que nossa tarefa de pais ou educadores só será cumprida quando filhos e alunos pensarem por conta própria, ou seja, quando eles sejam capazes de desconsiderar nossos conselhos e desobedecer a nossas ordens.
Seria cômodo se, como nas sociedades tradicionais, a gente dispusesse de ritos de passagem sancionando a entrada na idade adulta: aos 15 anos e um dia, saia sozinho pela savana, armado de uma lança, e só volte tendo matado seu primeiro leão. A partir de então, você será autônomo.
Infelizmente, para nós, o tempo de se tornar adulto se estende sem limites definidos: não sabemos quando ele acaba e, mais problemático ainda, não sabemos quando começa. Consequência: pais e educadores podem sofrer, exasperados pela rebeldia de moleques e meninas incontroláveis e, ao mesmo tempo, deliciar-se ao relatar as travessuras de filhos e alunos. Qualquer terapeuta já atendeu pais "desesperados" com a insubordinação dos filhos, mas que, de repente, abrem um sorriso extasiado na hora de contar "o horror" que é sua vida com esses descendentes que os desrespeitam.
Eis o problema que torna educar quase impossível, em nossa cultura: a autonomia, para nós, é um valor tão importante que ela precisa ser confirmada pela desobediência. Com isso, qualquer pai prefere, no fundo, lidar com um filho revoltado a imaginar que o filho possa ter uma vida servil e, portanto, medíocre.
Os santos mais respeitados são os que foram grandes pecadores e descrentes (Agostinho, Francisco, o próprio Paulo etc.). No imaginário cristão, aliás, uma conversão tem mais valor do que a fé de quem sempre acreditou. A parábola do pastor que deixa o rebanho para procurar a ovelha perdida sugere que, assim como a gente, talvez Deus prefira os rebeldes.
Uma anedota. Em maio de 1969, no átrio da Universidade de Genebra, junto com amigos anarquistas, eu distribuía panfletos criticando a iminente visita do papa à cidade.
Um professor, passando por nós, perguntou-me: "Será que o senhor tem uma autorização para distribuir esses panfletos?". Respondi imediatamente: "Senhor, tenho muito mais do que uma autorização, tenho uma proibição formal".
Fato coerente com o que acabo de argumentar, ele achou engraçada minha impertinência e deixou que continuássemos.

Folha de S. Paulo (06 de maio de 2010)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Novas mulheres - Contardo Calligaris


" SONHOS ROUBADOS" , de Sandra Werneck, entrou em cartaz na sexta-feira passada. Alguns críticos trataram do filme junto com o de Laís Bodanzky, "As Melhores Coisas do Mundo" (sobre o qual escrevi na minha última coluna). A razão desses comentários conjugados é que os protagonistas do filme de Bodanzky são adolescentes de classe média, enquanto o filme de Werneck conta a história de três meninas da periferia. Portanto, juntando as duas películas, teríamos um retrato da adolescência brasileira ou, no mínimo, de seus dois extremos. É nesse estado de espírito sociológico que fui assistir a "Sonhos Roubados" e que li o livro de Eliane Trindade, "As Meninas da Esquina" (de 2005, relançado agora pela Record), que reúne os diários de seis jovens mulheres, três das quais, com condensações e adaptações, são as protagonistas do filme de Werneck.
Mal precisei esperar até a metade do filme para que meu estado de espírito mudasse (e o mesmo aconteceu ao avançar na leitura do livro): rapidamente, eu me apaixonei pelas protagonistas e me esqueci da periferia, que é o pano de fundo da história. Por quê? Simples: é verdade que as três jovens são vítimas da desigualdade social brasileira, mas é também verdade que elas não têm vocação alguma para o papel de vítima. Ao contrário, elas são as admiráveis heroínas de suas histórias.
Jéssica, Daiane e Sabrina vivem de expedientes, entre fugas da escola, pequenos empregos, famílias patéticas e prostituição ocasional. Nessas condições francamente adversas, elas não deixam de inventar a vida.
Jéssica e Sabrina não desistem de ser mães. Daiane não desiste de encontrar uma profissão e uma família -se não um pai, pelo menos uma mãe. As três não desistem de sair à noite à procura de um amor que nunca dá certo, de um pouco de aventura e de umas risadas entre amigas.
De repente, o título do filme, "Sonhos Roubados", parece injusto para com as protagonistas, pois elas, justamente, lutam para que seus sonhos não sejam roubados.
Disse que Jéssica, Sabrina e Daiane enfrentam condições adversas. A condição mais adversa de todas são os homens, que são insignificantes ou funestos. A galeria é devastadora.
Há o pai de Daiane, que morre de medo de ser pai. Há o avô de Jéssica, simpático por ser beberrão e inepto.
Há o ex-marido de Jéssica, fantoche nas mãos de sua própria mãe. Há o tio de Daiane, que abusa da sobrinha-enteada. E há a fileira dos violentos e boçais, encabeçada pelo namorado de Sabrina.
Com esses homens, Jéssica, Sabrina e Daiane não podem contar. Eles são sombras, incapazes de assumir um amor (seja ele paterno ou conjugal), uma amizade e, na verdade, qualquer compromisso: são todos nanicos morais. A única exceção é o presidiário encarnado por MV Bill -o que me levou a pensar (seriamente) que talvez homem só melhore mesmo na cadeia. Nas periferias e nas favelas, os núcleos familiares estáveis se organizam, em geral, ao redor de mulheres.
A explicação recebida por esse fenômeno diz que um lugar social desfavorecido, subalterno ou marginal corrói a "virilidade" dos homens e, portanto, torna-os ou nulos ou violentos (como se eles precisassem compensar na marra a virilidade perdida).
Mas será que essa debandada masculina é apenas um fenômeno de nossas periferias? Ou será que, periferia ou não, os homens de hoje (para usar uma expressão da Carol do filme de Laís Bodanzky) são mesmo um pouco (ou muito) "cuzões"?
Não sei responder, mas o fato é que o filme de Sandra Werneck não me deixou nem um pouco aflito. Ao contrário, saí do cinema alegre, pensando: é bem possível que os homens estejam piorando, mas, por sorte, as mulheres estão cada vez melhor. Como assim?
Nas primeiras décadas depois dos anos 1960, parecia que as mulheres, para afirmar sua independência e conquistar sua cidadania, teriam que renunciar a ser "mulher", pois, por exemplo, a maternidade e o próprio desejo sexual eram considerados como caminhos de submissão ao homem e ao patriarcado.
Pois bem, as meninas de "Sonhos Roubados" não renunciam ao sexo nem à maternidade; elas podem até se servir de seus charmes para arredondar o fim de mês ou o fim de semana. Mas não por isso elas dependem dos homens. Talvez seja porque não há homens de quem depender. Talvez seja porque elas são as novas mulheres -mulheres sem a culpa de serem "mulher".

Folha de S. Paulo (29 de abril de 2010)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

"As Melhores Coisas do Mundo" - Contardo Calligaris


DOMINGO, NUMA conversa sobre filhos e netos, um amigo, pai de dois meninos que já têm mais de 20 anos, declarou que, graças a Deus, estava saindo da tormenta. Todos entendemos o que ele quis dizer: a relação entre pais e filhos adolescentes pode ser uma tormenta -e, às vezes, um tormento.
Essa tempestade se alimenta numa espécie de mal-entendido fundamental: 1) os adolescentes menosprezam a experiência dos adultos, 2) os adultos menosprezam a experiência dos adolescentes. Explico. 1) Para os adolescentes, em regra, os adultos (a começar pelos pais) são seres resignados (e talvez um pouco covardes), que desistiram de seus sonhos. A existência dos adultos sendo uma longa renúncia, entende-se que os entusiasmos e os sentimentos dos mesmos sejam quase sempre fingidos, inautênticos: uma encenação para um "ersatz" de vida.
Será que os adolescentes inventaram essa visão cruel e, de fato, sumária da experiência dos adultos? Nada disso: os adolescentes apenas acreditam em nossas próprias palavras. Como assim? Simples: estamos sempre prontos a salientar que a "época maravilhosa" que eles estão vivendo logo chegará ao fim e aí eles deverão se render à "triste realidade" (que seria a nossa), ou seja, eles conhecerão a desistência e o fracasso que seriam próprios da idade adulta.
Resultado: os adolescentes se surpreendem ou mesmo se revoltam quando um adulto, de repente, manifesta seu desejo. Um adolescente pode achar a mãe e o pai indignamente acomodados e chatos que nem zumbis vivendo numa sinistra rotina de deveres; o mesmo adolescente tacha de inconsequente e traidor do lar a mãe ou o pai que decide se separar para correr atrás de um amor. 2) Para os adultos, em regra, o adolescente é um ser provisório, inacabado: ele é apenas a promessa de um futuro no qual, enfim, ele viverá "de verdade".
Sobretudo na classe média, essa convicção é confirmada pelo fato de que os adultos bancam a longa adolescência dos filhos, e isso demonstraria que os adolescentes, sem independência, vivem uma época de formação, durante a qual a experiência é apenas um ensaio.
Um adolescente sofre por amor? Nosso olhar condescendente não é muito diferente do que seria se uma criança de oito anos nos dissesse estar apaixonada. Não é nada sério, é coisa de adolescente. O que um adolescente deve fazer para ser levado a sério? Nos últimos anos, em escolas dos Estados Unidos e da Europa, uma triste série de jovens saíram atirando, matando e se matando: "Será que, se eu assassinar dez colegas e três professores, alguém vai me levar a sério?", "e se eu me suicidar?". Quase todos esses jovens anunciaram seu desespero e seus planos, não em diários secretos, mas em blogs e sites que qualquer um podia acessar. Pois é, ninguém levou à sério.
Talvez a gente desvalorize a experiência dos adolescentes para compensar a inveja que nos inspiram suas vidas jovens e ainda para trilhar. Seja como for, os adolescentes retribuem nosso pouco caso considerando que somos apagados e previsíveis como o mobiliário da casa de família. Contra essa cegueira, pela qual ninguém enxerga a experiência do outro, um remédio: que você seja adulto ou adolescente, assista a "As Melhores Coisas do Mundo", o filme de Laís Bodanzky que estreou na sexta-feira passada. E, se for possível vencer a eventual resistência de todos, adultos e jovens, contra qualquer programa de família, melhor ainda: assista ao longa em bando. Garanto que o filme vai dar umas conversas boas e bem-vindas entre pais e filhos.
Os jovens gostarão de constatar que seu cotidiano vale a pena ser contado: o filme é um retrato milagrosamente exato da experiência adolescente (aliás, como a adolescência, ele consegue ser bem-humorado, divertido e, ainda, absolutamente sério).
Alguns comentaristas disseram que o tema do filme é o "bullying" na época da internet. Pode ser, embora eu prefira pensar que, simplesmente, não é fácil ir para a escola, a cada dia. E não é preciso que aconteça algo de extraordinário ou extremo para que a escola seja uma selva: para isso, basta a tarefa básica (e obrigatória para todos os adolescentes) de construir, inventar e preservar uma identidade sob o olhar impiedoso dos outros.
Mas, aquém ou além disso tudo, para mim, "As Melhores Coisas do Mundo" é um filme para os adolescentes descobrirem que os adultos ainda não desistiram de viver, e os adultos descobrirem que os adolescentes já estão vivendo, para valer.

Folha de S. Paulo (22 de abril de 2010)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

As pulseiras do sexo - Contardo Calligaris


BARATINHAS E divertidas, pulseiras de silicone de todas as cores foram populares nos anos 1980. Recentemente, entraram, de novo, no gosto das meninas.
Duas semanas atrás, aprendi, pela imprensa, que essas pulseiras, vendidas pelos camelôs país afora, tinham-se transformado num código sexual, no qual cada cor anuncia uma disposição de quem a veste. Por exemplo, uma pulseira azul assinala a vontade de praticar sexo oral, uma preta anuncia o desejo de ter uma relação sexual completa. Esse código vale no jogo do "snap" (arrebenta), cuja regra é que, em tese, mesmo um desconhecido, se ele conseguir arrebentar a pulseira de uma menina (nenhum esforço: o silicone é frágil), ganhará a prestação sexual anunciada pela cor do enfeite.
Como disse, soube disso duas semanas atrás. Ignorância minha: é fácil encontrar, na internet, artigos de 2009 sobre escolas médias norte-americanas que interditaram o uso das pulseiras de silicone por causa de sua significação sexual.
Como começou? Talvez com a brincadeira de um grupo de amigas fantasiando entre si no Messenger e, logo, abrindo o jogo para desafiar a timidez dos meninos. Ou pode ter sido a invenção de meninos frustrados, que brincaram de interpretar as pulseiras de suas colegas como mensagens sexuais que eles gostariam de receber. Seja como for, em poucos meses, o código das pulseiras se espalhou, mundo afora.
Certamente, muitas meninas usam esses acessórios só porque os acham bonitos. Mas há meninas usando as pulseiras por causa do código sexual. Nesse caso, o que são as pulseiras do sexo? Uma provocação de adolescentes inseguras? Ou será que elas expressam um desejo? Bom, mesmo uma provocação manifesta um desejo. Qual?
Nos anos 1970, na comunidade gay de São Francisco e de Nova York, começou o uso do código dos lenços no bolso traseiro das calças jeans: as cores correspondiam ao tipo de relação desejada, e o bolso escolhido dizia se o homem queria mandar ou ser mandado (esquerdo para os "tops", direito para os "bottoms").
A intenção do jogo não era facilitar os encontros (nas ruas do Castro ou do Village, esse problema não existia). Tampouco o uso de um lenço significava que o usuário, encontrando um "encaixe", transaria necessariamente. Então? Era fácil constatar que os lenços serviam para erotizar o cotidiano, para transformar qualquer passeio "inocente" à padaria da esquina numa possível fantasia erótica.
Coisa de homens, ainda por cima gays, obcecados por sexo? Pois bem, uma das obras-primas da literatura erótica do século 20 (que, aliás, é, sobretudo, feminina) é "História de O", de Pauline Réage (Ediouro, esgotado). No romance, a heroína aceita usar um anel que a torna reconhecível pelos membros de um clube, que são poucos e perdidos pelo vasto mundo, mas que, ao identificá-la, sabe-se lá quando e onde, terão o direito imediato de possui-la.
É desta mesma fantasia que se trata no uso das pulseiras do sexo: a fantasia de tornar erótica a trivialidade do cotidiano, cuja massa um pouco cinza, de improviso, poderia ser atravessada por relâmpagos de desejo. No fundo, as adolescentes que brincam com as pulseiras do sexo estão fantasiando com sua própria disponibilidade para a aventura da vida. E é por isso mesmo que elas encontram o ódio de quem não vive.
Nas últimas semanas, em Manaus (AM), três jovens que usavam as pulseiras foram estupradas, duas delas foram mortas. Em Londrina (PR), uma menina de 13 anos, que também usava as pulseiras, foi estuprada. Não se sabe por certo se as meninas e seus agressores conheciam o código das pulseiras. Nessas e em outras cidades, a prefeitura proibiu o uso das pulseiras nas escolas. Concordo com essa decisão preventiva, mas é espantoso que nossa sociedade seja incapaz de garantir às meninas a liberdade de andar pela rua com a alegria de quem fantasia desejar de corpo aberto.
Os estupradores e assassinos foram "provocados"? Será que as pulseiras, como os decotes e as saias curtas, suscitariam uma atração irresistível e, portanto, violenta?
Vamos parar de acusar as mulheres por elas serem estupradas. O estuprador nunca é atraído por suas vítimas; ele só tem o impulso irresistível de acabar com o desejo delas. Por quê? Por raiva de ele não estar, por exemplo, à altura do mundo com o qual fantasiam as meninas com suas pulseiras: um mundo que seja o teatro possível de mil aventuras (sexuais ou não).

Folha de S. Paulo (15 de abril de 2010)

sábado, 10 de abril de 2010

Cuidado com o peso e a forma - Contardo Calligaris

08 de abril de 2010

Quanto menos nós controlamos nossa vida, tanto mais esperamos controlar nosso peso

NA SEMANA passada, celebrando o Pessach ou a Páscoa, muitos jantaram ou almoçaram em família. Aposto que, em algum momento, diante da fartura e das guloseimas que estavam na mesa, a conversa tratou dos planos e dos esforços de cada um para manter a linha, emagrecer ou aumentar de peso (músculos, não gordura, é claro), em suma, para conseguir dar ao corpo uma forma "satisfatória".
Para essa conversa acontecer, não foi preciso que houvesse magros ou obesos ao redor da mesa. A inquietação com o peso e a forma não é efeito do estado de nosso corpo. Ela se tornou onipresente nas últimas duas ou três décadas: sua difusão coincide com o aumento dos transtornos alimentares (supostas epidemias de bulimia e anorexia), mas é, de fato, uma espécie de transtorno alimentar em si, um transtorno alimentar da conversa e do pensamento.
É citada por toda parte (sem mais precisões) uma pesquisa segundo a qual 81% das crianças (norte-americanas) de 10 anos estariam com medo de ser gordas, e 50% das meninas dessa idade declarariam estar fazendo um regime. Agradeceria aos leitores que me ajudassem a encontrar o texto original dessa pesquisa, que, segundo algumas fontes, seria do começo dos anos 90. De qualquer forma, mesmo que a dita pesquisa seja uma lenda, sua popularidade confirma um fenômeno que todos verificamos a cada dia: hoje, a forma e o peso preocupam até as crianças.
Nesta altura, seriam esperadas acusações contra nossos hábitos alimentares, contra a vida sedentária e contra os ideais impossíveis promovidos pela cultura de massa e pela indústria do regime e da forma física. Em suma, estaríamos todos pensando no peso por culpa da preguiça, do McDonald's, da Barbie e do G.I. Joe, bonecos que parecem ter sido inventados para que, desde a infância, ninguém se contente com o corpo que tem.
É com essa expectativa que li o número de fevereiro de "Counseling Today" (revista da American Counseling Association), consagrado a transtornos alimentares e imagem do corpo. Expectativa frustrada, felizmente: num longo artigo sobre a obsessão com o peso, é entrevistada uma terapeuta, Anna Viviani, que oferece uma explicação específica por nosso interesse pelo peso e pela forma com ou sem transtornos alimentares propriamente ditos.
Resumindo, ela entende assim: quando alguém sente que tudo na sua vida está fora de controle, ele sente também que os alimentos, o peso, o exercício são coisas que, em princípio, ele poderia controlar.
Tanto faz, aliás, que alguém consiga seguir um regime à risca, emagrecer ou aumentar de peso e fazer ginástica regularmente. O que importa é que as consultas, as propostas, as leituras e as conversas intermináveis sobre dieta e exercício têm um valor em si: elas mantêm viva a promessa de um controle -que é difícil, mas que é, em tese, possível.
À diferença do que acontece, em geral, com nossa vida amorosa e profissional, acreditamos (com uma certa razão) que nosso peso e nossa forma dependem de nós.
Nesse campo, podemos não fazer o necessário, mas sempre se trata de um não fazer "ainda": um dia, faremos e, quando fizermos o necessário, controlaremos nosso peso e nossa forma.

É tentador propor uma equação: quanto menos estamos em controle de nossa vida (amorosa, profissional, social e mesmo moral), tanto mais nos preocupamos com peso e forma, que, bem ou mal, podem ser controlados.
Numa direção parecida, na mesma matéria, outra terapeuta, Erica Ritzu, resume assim a fala de um paciente com transtornos alimentares: "Se você não me escuta e não deixa nunca que minha opinião conte, posso ao menos escolher não comer nada".
De repente, a greve de fome dos presos políticos pode ser um modelo para entender o que acontece nos transtornos alimentares e em nossa preocupação com peso e forma.
Certo, na greve de fome, os presos põem a vida em risco para promover uma causa (a sua própria ou outra). Mas eles também exercem, heroicamente, o que lhes sobra de liberdade; eles não são escutados, estão encarcerados, não podem nada, mas há algo que eles controlam: sua própria ingestão de alimentos. É o que sugere Anna Viviani, ao interpretar nossa obsessão com regime e exercício: quem não controla nada, pode, como último recurso, controlar sua alimentação, seu peso e sua forma.
Bom, só resta admitir que não controlamos nada, como os presos.
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