quarta-feira, 14 de abril de 2010

Crianças - João Pereira Coutinho


O MELHOR do mundo são as crianças, disse Fernando Pessoa, que curiosamente não teve nenhuma. A frase do poeta não se aplica ao momento presente, vivido pelos seus compatriotas. Dois casos ilustram o ponto.
Primeiro caso: duas semanas atrás, um rapaz de 12 anos, do interior de Portugal, saiu de casa, aproximou-se das margens do rio. E saltou para a morte. Alguns amigos explicaram depois que a vida dele era um inferno nas mãos de outros colegas, que o torturavam na escola de todas as formas possíveis. O rapaz, cansado de apanhar, comunicou à tia que não aguentava mais. A tia, provavelmente, não ligou. Só os amigos assistiram ao suicídio. Não conseguiram impedi-lo. O corpo ainda não foi resgatado.
Nos dias seguintes, Portugal debateu as causas da violência escolar. Um termo elegante ("bullying") entrou no linguajar dos patrícios. E, é claro, exércitos de psicólogos foram enviados para a escola do rapaz com o nobre propósito de prestar assistência terapêutica aos agressores.
Você leu bem: aos agressores. Na minha rudeza primitiva, eu julgava que os agressores mereciam expulsão, ou coisa pior. No mundo moderno, merecem terapia. Na semana passada, os jornais lusitanos contaram outro caso recente: um professor de meia-idade que, atormentado pela selvajaria da turma, deixou uma mensagem escrita.
Ele, em depressão há dois anos, não aguentava mais os insultos e as ameaças dos alunos. Decidiu desistir. E desistiu. Saltou da ponte 25 de Abril, em Lisboa, e mergulhou nas águas do Tejo.
Os dois casos são trágicos, mas não aconteceram por acaso: sucessivas reformas educativas em Portugal, ao destruírem a autoridade dos professores, apenas prepararam o terreno para que as escolas públicas do país se transformassem em faroestes grotescos, onde as crianças não conhecem lei. E não conhecem lei porque elas são o melhor do mundo. Ou não são?
Manoel Carlos, autor da novela "Viver a Vida", responde: nem sempre. Na história de Manoel Carlos, existe uma criança, Rafaela, interpretada pela atriz Klara Castanho, de 8 anos. Rafaela é um anjo, sim, mas um anjo perverso. A vilã, no fundo, é capaz de atos reprováveis, inomináveis. Atos só possíveis em adultos. Melhor: em psicopatas adultos.
Os brasileiros não gostaram desse desconfortável fato: uma criança maldosa? O Ministério Público do Trabalho (MTP) do Rio notificou o autor para que alterasse a personagem. Agora, segundo leio na imprensa, o MTP teve nova audiência com o departamento jurídico da Globo e ainda poderá afastar a criança da novela. Exceto se o autor transformar Rafaela na versão infantil da Madre Teresa de Calcutá. Como explicar a insanidade?
As razões são duplas. Para começar, os especialistas do Ministério Público afirmam que a atriz mirim não tem capacidade para separar a realidade da ficção e isso pode ter consequências nefastas no seu desenvolvimento psíquico e social.
Hoje, a atriz tem 8 anos; mas amanhã, com 18, pode imitar os comportamentos desviantes que formaram a sua cabeça de menor.
E, para acabar, os especialistas relembram uma possibilidade prática: a personagem Rafaela é tão odiosa que pode despertar hostilidade real do público, disposto a insultá-la ou agredi-la.
Evidentemente, nenhuma das razões esconde a explicação principal: os brasileiros não toleram a imagem de uma criança má porque Rousseau triunfou no espírito dos modernos.
Triunfou no Brasil, triunfou em Portugal, triunfou em qualquer parte do mundo onde a piedosa romantização da infância apresenta qualquer membro da espécie como o exemplo acabado da Pureza e do Bem (com maiúsculas). A Pureza e o Bem que, escusado será dizer, só a constituição da sociedade política acabou por corromper com seus arranjos violentos e hipócritas.
As crianças não podem ser más; maus são os adultos e o mundo de subjugação e poder que eles construíram para aprisionar os mais fracos. Quando muito, as crianças são vítimas; e mesmo quando precipitam as maiores tragédias, elas continuam sendo vítimas. Elas continuam a precisar de exércitos de psicólogos que as compreendam em suas dores profundas.
Acreditar no mito da bondade inata dos seres humanos pode descansar e consolar as nossas consciências progressistas: as consciências dos políticos portugueses ou dos juristas brasileiros. Infelizmente, não descansa nem consola os dois corpos que jazem mortos no fundo dos rios.

Folha de S. Paulo (16 de março de 2010)

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