domingo, 11 de abril de 2010

A morte do sentido - Maria Rita Kehl


O que tanta gente foi ver do lado de fora do tribunal onde foi julgado o casal Nardoni? Torcer pela justiça, sim: as evidências permitiam uma forte convicção sobre os culpados, muito antes do encerramento das investigações. Mas para torcer pela justiça não era necessário acampar na porta do tribunal, de onde ninguém podia pressionar os jurados. Bastava fazer abaixo-assinados via internet pela condenação do pai e da madrasta da Isabella. O que foram fazer lá, ao vivo? "Ver" a morte? "Lá onde moro não tem esse negócio de morte violenta. Lá só tem árvores e passarinhos", disse à TV um rapaz que viajou de Ibiúna para dormir ao relento na frente do fórum de Santana. Ele foi ver a morte.

Mas a morte não se vê de fora do tribunal. Nem pelo lado de dentro. Nem de lugar nenhum. A morte mesmo, mesmo, é aquilo que não se vê. Vê-se o corpo sem vida. Vêm-se marcas de violência, decrepitude, doença. A morte está fora de nossa capacidade, tanto de representação em imagem quanto de simbolização. Por isso (assim como o gozo sexual) ela dá tanto o que falar.

Talvez um assassino chegue muito perto de ver, frente a frente, a morte que causou. Como pode suportar? Matar alguém é um ato que rompe a tela de proteção que separa o indivíduo de um gozo excluído da consciência, da lei dos homens, da linguagem. Matar não traumatiza somente a família da vítima. Traumatiza o assassino. Não precisamos ser piedosos para reconhecer esse fato que, por si, não perdoa ninguém. Importa entender que a repetição é a resposta do psiquismo ao trauma. O sujeito que mata uma vez é compelido a repetir seu ato na busca inconsciente de sentido não só para o horror que cometeu, mas também para a identificação indelével na qual se precipitou: a de assassino.

Todos os assassinos primários deveriam ter direito a tratamento psicológico. Independente da magnitude da pena. Imaginemos quantos meninos da Febem não estão neste momento ruminando seus atos, tentando combinar o antes e o depois, sem encontrar outra alternativa para reorganizar-se psiquicamente a não ser se convencer de que são assassinos. Elaborar o trauma não diminui o mal que foi feito, mas pode minimizar a possibilidade de que repitam o ato que também os destruiu psiquicamente, além de ter destruído a vida alheia. A alternativa solitária é parar de pensar e mergulhar de vez no mal absoluto.

Volto ao julgamento dos assassinos da criança Isabella. Penso que as pessoas não torceram apenas pela condenação dos principais suspeitos. Torceram também para que a versão que inculpou o pai e a madrasta fosse verdadeira. Alguém me disse, depois do assassinato dos queridos Glauco e Raoni, que sentiu alívio ao saber que o criminoso era conhecido das vítimas. Ora essa: por quê? Afinal, um crime cometido entre amigos - ou, pior ainda, por alguém da família - não é muito mais hediondo do que a violência praticada por um estranho? Certamente sim. Quem pode se conformar com a ideia de que um pai tenha participado do assassinato da filha pequena?

O relativo alívio que se sente ao saber que um assassinato se explica a partir do círculo de relações pessoais da vítima talvez tenha duas explicações. Primeiro, a fantasia de que em nossas famílias isso nunca há de acontecer. Em geral temos mais controle sobre nossas relações íntimas do que sobre o acaso dos maus encontros que podem nos vitimar numa cidade grande. Nada mais assustador do que a possibilidade do mau encontro: um ladrão armado, nervoso, cabeça fraca, que depois de roubar resolve atirar sem saber por que, porque sim, porque já matou outras vezes e então, por que não? Morrer na mão de um semelhante a quem não se pode dizer palavra alguma.

Segundo porque o crime familiar permite o lenitivo da construção de uma narrativa. Se toda morte violenta, ou súbita, nos deixa frente a frente com o real traumático, busca-se a possibilidade de inscrever o acontecido numa narrativa, ainda que terrível, capaz de produzir sentido para o que não tem tamanho nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não faz sentido.

Até hoje não se inventou nada melhor do que as narrativas para proporcionar algum sentido para o sem sentido do real. Não é o simbólico que faz efeito de verdade sobre o real, é o imaginário. O mar de histórias, lendas, mitos, fofocas, as mil versões que correm de boca em boca, ainda que mentirosas, ainda que totalmente inventadas, promovem um pequeno descanso na loucura que é estar nesse mundo sem bússola, sem instruções de voo, sem verdade, sem amparo.

Desde que o renascimento abalou a narrativa hegemônica que a Igreja impôs ao homem medieval, as pessoas se lamentam de que o mundo perdeu sua antiga ordem. A modernidade, primeiro, pulverizou as grandes narrativas, depois tentou consolidar utopias mortíferas da razão e agora procura recobrir a face do mundo com imagens industrializadas. Mas ainda não foi capaz de inventar narrativas à altura da complexidade das forças humanas que ela própria liberou.


O Estado de S.Paulo (03 de abril de 2010)


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