quarta-feira, 2 de junho de 2010

Mentes cativas - João Pereira Coutinho


ANOS ATRÁS, em encontro promovido pela Liberty Fund, conheci um professor polonês que sobreviveu ao século 20. Não foi fácil. Sobreviver ao nazismo, primeiro, e ao comunismo, depois, não é para qualquer um.
Mas, na conversa que tivemos, lembro-me de uma correção que ele fez ao meu discurso. Falava eu sobre as atração das massas do Leste da Europa pela "Nova Fé" moscovita. Ele interrompeu e disse que elas não sentiram qualquer atração. Todas sabiam que a "Nova Fé" não passava de mentira institucionalizada.
Atração existira, mas entre membros do Partido e, de forma mais ambígua, entre "intelectuais".
Recordo esse diálogo certeiro porque acaba de ser publicado no Brasil um dos mais importantes livros sobre a forma como esses "intelectuais" se renderam à "Nova Fé".
Intitula-se "Mente Cativa" (ed. Novo Século, R$ 39,90, 248 págs.) e o autor, Czeslaw Milosz (1911-2004), poeta emérito e testemunha dos horrores do nazismo e do comunismo antes de optar pelo exílio, explica por escrito o que o meu amigo polonês verbalizou sem hesitar.
Uma passagem de "Mente Cativa" ilustra o que digo: acontece quando Milosz evoca uma viagem pela União Soviética em 1939 e, no trem, encontra um casal de camponeses. A mãe alimenta o filho mais novo, o pai prepara o chá para o mais velho, ambos trocam palavras sussurradas sobre as crianças.
Milosz confessa que assistiu à cena às lágrimas. Aquele casal, provavelmente analfabeto, conseguira conservar sementes de humanidade no meio da desumanidade geral.
As massas não compraram a mentira, mas por que motivo os intelectuais o fizeram? Não serão eles os clássicos guardiões do bem, da verdade e do belo?
Para responder à pergunta, é necessário entender como funcionaram as mentes ilustradas nas "democracias populares". E o primeiro mito a desfazer, escreve, é o de que a adesão à "Nova Fé" se fez apenas pela violência imposta pelo Partido.
A adesão era muitas vezes voluntária porque nascia de um medo mais primordial: o medo do vazio e do absurdo.
Com a velha ordem em ruínas, com a destruição das teologias tradicionais e dos valores que nortearam e uniram gerações passadas, os ditames férreos e "científicos" do marxismo-leninismo afiguravam-se como a panaceia milagrosa para que o intelectual recuperasse uma noção de ordem no meio da desordem epistemológica e ética da modernidade.
Mas o intelectual não sentia apenas o medo do vazio e do absurdo. Ele temia a solidão a que seria votado se se afastasse da ortodoxia dominante. Seria possível escrever de forma relevante quando nos colocamos à margem do materialismo dialético? Quando, em suma, remamos contra o determinismo da história?
O medo da solidão não era mais do que o temor da esterilidade. Para a vaidade dos literatos, um trabalho sem significado será sempre pior do que nenhum trabalho.
Milosz presenciou esses fenômenos de autodestruição espiritual: a forma como a dúvida se instalava nas mentes cativas, os inícios da rendição, algumas resistências pontuais, embora já contaminadas pelos demônios da autocensura.
E, depois, a entrega total à "Nova Fé". Como se essa garantisse a paz desejada. Não garantia. Apenas a paz ilusória e amarga de quem destruía uma vida interior e uma perspectiva pessoal sobre o mundo. Para viver uma mentira que, no fundo, se pressentia ainda como mentira.
Os intelectuais de Moscou, Budapeste ou Varsóvia, escreve, não eram poetas, romancistas, filósofos. Antes, eram atores, permanentemente divididos entre o sentir e o mostrar. Mediam gestos, palavras, expressões. Representavam.
E, dessa representação, alienante e até dolorosa de início, começaram a retirar um prazer infantil, masoquista, perverso. Inumano. Até não saberem mais distinguir a máscara do rosto. Porque a máscara devorara o rosto.
Não é apenas o mais pungente retrato sobre a destruição moral a que os "intelectuais" se submeteram nos regimes comunistas. Ler a prosa soberba de "Mente Cativa" é encontrar também, de forma mitigada, traços que persistem nas classes cultivadas das sociedades livres.
Traços que encontramos ainda em intelectuais que, temendo a dissensão e a solidão, preferem as certezas enganadoras do rebanho. E de caminhar com ele rumo ao matadouro interior.

Folha de S. Paulo (1º de junho de 2010)

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